Casa, modo de usar

Leonor Antunes, 2011

  ou A casa de Bartlebooth[1]

palavras cruzadas

Morar no edifício de Perec

No campo das pesquisas ou mesmo das incursões no pensamento artístico, seguimos nos perguntando, como compreender e teorizar procedimentos e experiências estéticas e, de alguma forma, criar artifícios ou processos para aproximá-los das argumentações conceituais.

É possível, através do estudo e registro de determinado processo de produção artística, tornar coletivos saberes de modo que possam ser úteis ao estudo de outros processos? Seriam eles traduzíveis?

Apesar do desejo humano incurável de organizar racionalmente o mundo, a plurissignificação é a dinâmica que justifica a arte contemporânea.  Zombar das pretensões universalizantes da razão tem sido a tônica da produção artística de nossa era. Diálogos contemporâneos entre o entorno e a obra somam-se às questões epistemológicas sobre o fim da arte e o advento de linguagens que transitam entre múltiplos campos de conhecimento e comunicação, alavancadas pelo discurso multimodal.[2]

Artistas, literatos, estudiosos e práticos imersos nas ramificações das linguagens, compreendem que principalmente a multimodalidade e a opacidade dos produtos artísticos possibilitam a ampliação das experiências. Muitos desses produtos, inclusive, inspiram ou até mesmo cedem seus argumentos formais ou conceituais a outros que, em campos distintos, resultam em novos percursos e novas poéticas.  

Este artigo se presta a comentar um significativo exemplo de como uma obra pode emprestar-se a outra, permanecendo, ambas, particulares na concepção.  

O romance A vida modo de usar, tem em si o peso e a importância de representar uma novidade literária em 1978, além de ser considerado por Ítalo Calvino o último verdadeiro acontecimento na história do romance. O enredo de Georges Perec tem um curso muito particular, que sugere a simultaneidade, a desconexão e o descompromisso com a própria noção de enredo. Talvez, por isso, o romance represente algo novo: por ser inesperado e se fundar sob a égide de uma estética urbana mais próxima da vida. A trama acontece, principalmente, através dos objetos elencados e descritos com detalhes, ao ponto de a imagem dos ambientes e da organização espacial descritas figurarem como imagens claras no livro. Na verdade, é por eles que se conta a história de cada morador do edifício no número 11 da rua Simon-Crubellier. Todos esses personagens, surgidos de uma forma nova de contar, são feitos de passado.

O escritor constrói a imagem do “morar” através do universo particularmente organizado que envolve os moradores. Num compasso de interrupções e retomadas de histórias, vai-se tecendo a imagem do edifício e do conjunto formado pelas particularidades de seus moradores. Talvez peça central dessa história, Percival Bartlebooth, como uma imagem do autor na trama, tenta criar e resolver puzzles. O personagem do livro faz dessa tarefa um empreendimento de vida.

Uma das características mais relevantes do romance de Georges Perec é a insistência de, através dos fragmentos de contextos dentro do espaço do edifício mundo que os abriga, criar lacunas, brancos, a serem perscrutados pela imaginação do leitor.

O romance, relevante contribuição literária, também se tornou referência clássica no trabalho de Leonor Antunes, desde 2003.

Ao tentar lançar um olhar sobre essas influências de um sobre o outro e assumindo o tom de leitura pessoal dessas relações, congruências e incongruências entre o romance de Georges Perec e a exposição de Leonor Antunes no Museu Serralves, pretende-se mais proceder a um esforço, juntamente com o leitor, de criar possibilidades de diálogo entre essas duas produções que levam seus títulos como definidores de dois brotes de uma mesma origem. Além das comparações e reflexões que se seguem, há a possibilidade de confronto livre entre o breve comentário já feito sobre o livro A vida modo de usar e aquele que se fará a seguir, sobre Casa modo de usar.

 

A casa de Bartlebooth

O conjunto da exposição de Leonor Antunes, no Museu de Serralves, pode ser interpretado como uma só obra – já que transitar por entre as peças expostas acaba por sugerir que o arranjo e a ocupação do espaço pelo conjunto tenha sido o mote da montagem. Além disso, o entendimento da autoria, nesse caso, não é possível através do estudo dos seus fragmentos. Portanto, num primeiro momento, o intento é de uma interpretação integrada da mostra. Isto de modo algum quer dizer que há, no conjunto das peças expostas, conexões ou trajetos fáceis. Nisso a mostra se aproxima da estrutura complexa proposta por Perec em seu livro.

Dos materiais que reclamam técnica e perícia na lida, à ânsia por comunhão que suas peças articulam com os espaços que as acolhem, Leonor traz, na feitura de seus trabalhos a marca do artifício. Talvez mesmo porque os signos do fazer proporcionem a sensação de familiaridade que o conjunto desperta, num percorrido pelos ambientes ocupados do Museu Serralves. Os mesmos materiais e formas – que conferem sentido estético ao título da exposição e ao lugar das peças -, dão pistas de que alguém “habitou” ali, e escondem os possíveis motivos e circunstâncias específicas que, sob pena de não parecerem coerentes, as colocaram de tal modo. São os códigos que inspiram um modus vivendi e são – sob uma ótica daquele que observa o espaço, o visitante e as peças, em seu jogo, sua dança – a armadilha que quer apreender a atenção. Daí a estranheza familiar que nos acolhe na exposição. A densidade de leitura que suscita se confunde com a “limpeza” da poética. Os trabalhos da artista habitam o espaço, assim como os personagens e seus pedaços de cotidiano vão tecendo a arquitetura das páginas de Vida modos de usar.

No percurso, no entanto, confrontar os códigos propostos do morar com os trabalhos expostos e, forçosamente, buscar sentido, naquele já mencionado desejo humano de razão, provoca alguma apreensão.  Há que lançar mão da liberdade no exercício da fruição, algo ao que não estamos acostumados, verdadeiramente.

 la11_serralves007Avoiding the mistral wind.

 

O enredo das peças da exposição Casa, modo de usar, assim como na ficção de Perec, representa o romance que emana da dialogia entre autor, espaço e obra, envolvendo o espectador na trama, a ponto de fazer com que qualquer hierarquia entre esses três elementos desapareça. Leonor, assim como o escritor, apresenta em cada capítulo/obra do conjunto, uma peça singular de um quebra cabeças.

 

IMG_5028Vila mallet Stevens, 2011. Ao fundo a obra Avoiding the mistral wind.

 

O espaço expositivo ganha cada vez mais importância na prática da artista. É quase uma constante – não só no conjunto de obras dessa exposição, mas em obras anteriores e posteriores a essa -, que o fazer de Leonor se apoia na concepção de que espaço e obra vão se construindo mutuamente. As peças que cria atuam como testemunho da relação entre o espaço expositivo e seu processo artístico. As instalações/esculturas habitam os espaços como discurso da experiência.

 

LA-022 The lacquer screen of E.G., 2008.

 

Talvez em Casa modo de usar não haja a intenção de montar um complexo jogo matemático, uma trama lógica como no xadrez, mas claramente há na leitura dos espaços do Museu Serralves onde habitam as peças da artista, uma atmosfera que cobra do espectador sensação análoga àquela do leitor que visita os apartamentos através das imagens criadas pela escrita de Perec.

 

Congruências

Assim como os escritores do grupo OULIPO, ao qual pertenceu o escritor, Leonor Antunes tem, na construção e montagem de suas peças, métodos e regras de construção meticulosas, perceptíveis mas não descritíveis pelo espectador. Não obstante, são regras que causam algum incômodo dentro da ordem. É exatamente esse “arranjo” com que as obras se apresentam, contrastado com o aspecto sutilmente incongruente das peças entre si que faz com que a montagem ganhe aspectos familiares, permeados pelo estranhamento. O jogo estético entre a arquitetura do museu e as peças de modos de usar é, no mínimo, inquietante. O museu, como no edifício construído para abrigar a trama de Perec, torna-se parte da proposta da artista. A arquitetura do Museu Serralves, como significadora das obras expostas, se transforma também em ficção da artista.

Essa dialogia entre as peças e a arquitetura afeta ou, melhor dizendo, fala ao espectador. O familiar, mais ligado à ideia de habitar conduz o percurso. Mas o estranhamento, afeito ao meticuloso jogo da construção de enredos, que fica por conta do visitante, infere ao percurso a sensação do alheio, ao permitir-nos entrar na privacidade dos espaços habitados do edifício construído por Perec ou, ainda, pelos espaços em branco do não dito no seu livro.

Portanto, referindo-me a um e a outro – obra da artista e o romance – a ideia de que há um enredo construído a partir de peças prontas, não vem dos seus autores, mas do leitor/espectador. É como Adam Sharr (2009), ao descrever a organização e localização dos espaços e objetos da pequena cabana de Heidegger nas montanhas da Selva Negra, no sul da Alemanha, nos leva a criar a ideia de como o filósofo a habitava. Há uma cumplicidade declarada e, de certa forma, inquietante.

 LA-026Walk around there. look through here, 2001

 

Também na relação entre o conjunto das peças e a arquitetura do Museu de Serralves se materializa o ambiente onde circula o visitante e onde acontece a tessitura da fruição. Dentro dos espaços, acolhidos pela arquitetura, também estamos imersos na trama. As páginas manuscritas de Vida modo de usar – que configuram grandes espaços com grandes margens e anotações esparsas, funcionando como pequenos versos evocatórios para a nossa memória – corresponderiam ao não verbalizável da experiência na exposição de Leonor Antunes.

A leitura, do livro e da obra, dá-se não apenas no plano conceitual, mas no âmbito da experiência estética, pela forma, na poética particular de um e de outro.

Mais interessante e surpreendente é constatar que, entre a exposição e o romance – se tomamos como exemplo o antigo morador do apartamento dos Altamont, na ficção do escritor, vemos que as lacunas e o não dito nas experiências de vida do personagem são o ápice do enredo – é possível dizer também que as obras de Leonor Antunes que compõem o conjunto apresentado, produzidas em momentos distintos e para exposições diferentes, trazem em si sua própria proposição. Há um todo de individualidades, assim como no edifício de Perec. Não falamos, em ambos os casos, de um romance, mas de romances.

Leonor abriu mão, se é possível tal comparação, da profusão de personagens da obra de Perec, assim como dos detalhes advindos da obsessão do autor, mas manteve em sua proposta para o Serralves, a profusão de espaços fictícios. Deixa ao espectador a carga de simular ou criar os personagens e detalhes resultantes do percurso da exposição. Como nas palavras cruzadas[3] impressas no jornal no apartamento dos Altamont na ficção de Perec, o visitante da exposição convive com a falta e com a imposição de completar parte do jogo. A sensação inicial de totalidade é ilusória pois, tanto na ficção de Perec quanto na exposição do Museu Serralves, o que se oferece é a impossibilidade de completude.

[1] Percival Bartlebooth, protagonista do romance de Georges Perec , Vida modos de usar: romances, é um amador de quebra-cabeças compulsivo, um milionário que traça para si um rigoroso plano que o conduz, voluntariamente, ao ponto de início. Projeta para si um propósito que ocuparia praticamente toda sua vida sem, contudo, esperar disso nada mais que a realização pura e simples desse propósito.

[2] O termo multimodal, utilizado como conceito definidor da comunicação contemporânea, é adaptado aqui para uma interpretação de produtos artísticos que prescindem de vários meios, materiais e imateriais, em sua construção. Segundo Trajano (2012) Na multimodalidade, a representação e a comunicação sempre recorrem a uma multiplicidade de modos e todos têm o potencial para contribuir igualmente na produção do significado, ou seja, os significados são criados, distribuídos, recebidos, interpretados e recriados na interpretação por meio de variados modos de comunicação e representação, não apenas a linguagem verbal (língua escrita ou oral).

[3] 2009, p. 137 e p. 141 na versão de 1978. Ilustração das palavras cruzadas da primeira edição.

Sérgio Vaz