Passagem

Tales Frey, 2016

 

 

 

O “Mito” da(s) Masculinidade(s): Atravessamentos Simbólicos na Obra Passagem de Tales Frey

Por Lizi Menezes

 

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Tales Frey, Passagem (2016). Registro fotográfico de Paulo Aureliano da Mata.

 

Historicamente, o homem interpretou-se – e passou a ser experienciado – como representante da humanidade. Linhas do tempo anunciam os reflexos das projeções comportamentais do sexo masculino como sendo modelos apropriados e reapropriados em categorias que estruturam todo o conhecimento até então assentado apenas na relação do homem com a dominação do espaço. Adrinne Ricchi [1] nos conduz a pensar o corpo como a geografia mais próxima. Seguindo por esse roteiro, percebemos que o mapeamento do corpo do sexo masculino, equivocadamente naturalizado [2] como dominador, foi reduzido à masculinidade hegemónica. Ainda hoje, embora existam narrativas sobre a ótica dos estudos de géneros às diversas masculinidades [3], o atrevimento do devir [4] corpo (des)conhecido da ordem heteronormativa é situado como periférico [5] e não masculino [6].

Coordenado ao ritmo lacaniano, no que diz respeito ao reconhecimento do sujeito por etapas, e revisitando a metáfora do espelho, o artista Tales Frey criou uma série de narrativas imagéticas de ritos de passagens no dia em que é celebrado o seu nascimento. Contudo, nesta crítica, eu me detenho no último rito intitulado Passagem, apresentado no dia 20 de junho de 2016 no CAAA (Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura) em Guimarães. O artista executa, no tempo de uma hora, uma passagem cronometrada num momento performativo. Essa passagem – que é circunscrita em um espaço-tempo onde circundam convidados-espectadores da ação narrada na formalidade do seu “aniversário” – projeta, sob carácter simbólico e imagético, o conceito de efémero. Indiferente a esse momento transitório é também a memória. Contrastes de percepções são destaques na performance Passagem; evidenciado o corpo isolado do artista, podemos refletir sobre a individualização que permanece interativa ao acontecimento que é social e, não sendo descartado enquanto coletivo, segue reafirmando propriedades exclusivas de corpo-tempo-espaço-memória.

 

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Tales Frey, Passagem (2016). Registro fotográfico de Paulo Aureliano da Mata.

 

Compreender o mundo é nos compreendermos no mundo sob a ótica patriarcal e, também, periférica à masculinidade hegemónica, pensarmos a dualidade humana categorizada, primordialmente, pelo binómio sexual homem e mulher. O que roça o tempo-espaço, delimitado de começos e fins narrados em cronologias e genealogias que não extravasam as bordas do corpo e do sexo? A sexualidade humana, reconfigurada em acordos de poderes como narrativas legitimadoras da superioridade masculina, naturaliza os valores simbólicos de inferioridades que são, desde o nascimento, socialmente inscritos no corpo. O que a cultura patriarcal classifica como mulher é confrontado por Simone de Beauvoir no locus classicus “não se nasce mulher, torna-se mulher” num primeiro momento de desnaturalização do feminino – e do masculino –, que a filósofa Judith Butler leva mais longe na sua teoria da performatividade (1990).

No planeamento em que o artista se instala no espaço, o seu corpo não está dispensado da sua experiência(ção), sua presença física nos é entregue e imposta como indumentária. Compomos, todas e todos, a materialização que sexualiza o rito de passagem. O artista nos promove a localização como observadoras e observadores – novamente, contrastando-nos na dualidade do corpo – entre o passivo e o ativo. Somos cúmplices -virtuais- em duelos -de egos- numa gangorra sexualizada, de inícios e fins, de fins e inícios.

 

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NOTAS:

[1] Ver: Adrianne Rich, Notas para uma politica da localização, 1981.

[2] Utilizo o conceito de naturalizar da mesma forma que o sexo feminino é naturalizado como dócil, materno, dominado.

[3] É importante pensar a masculinidade hegemónica como produto histórico que tenta disciplinar todas as demais masculinidades subordinadas ao patriarca heterossexual não negro e não deficiente.

[4] Precisamos levar em conta as transgressões que o corpo é inserido a todo momento na efemeridade do mundo sempre em conflitos globais. Ver: SANTOS, Boaventura de Sousa, A Globalização e as Ciências Sociais, 2002.

[5] Penso, na perspectiva ocidental, que na relação entre o dominador e o dominado não existem modos de inclusão, apenas exclusão. Sendo o sexo masculino branco heteronormativo e não deficiente, o centro do poder, todas as outras identidades não hegemónicas também são consideradas não masculinas.

[6] A ordem social categoriza, primordialmente, os corpos através da diferença sexual, a seguir por etapas seguem as classificações de outras minorias como por exemplo as etnicidades. Assim negligência e desvaloriza a ocupação física dos/e os corpos classificando-os como não masculinos.

 

BIBLIOGRAFIA:

BEAUVOIR, Simone de, O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

BUTLER Judith (2004). “Actos performativos e constituição de género. Um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista”, in MACEDO, Ana Gabriela (org.) Gênero cultura visual e performance. Antologia Crítica. Livros Cotovia: Lisboa, 2011.

RAMALHO, Maria Irene (2013), “Difference and Hierarchy Revisited by Feminism“, Anglo Saxonica, Ser. III N. 6. 23-45.

RICH, Adrienne (1984), “Notas para uma Política da Localização”, in MACEDO, Ana Gabriela (org.) Gênero, Identidade e Desejo, Antologia Critica do Feminismo Contemporâneo. Livros Cotovia: Lisboa, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa (org). A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002.

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Lizi Menezes (1981), feminista e artista visual formada pela Universidade Federal de Santa Maria-Brasil, com Especialização e Mestrado em Estudos Feministas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, cursa o Doutoramento em Arte Contemporânea do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra e tem como interesses de pesquisa histórias de vida de mulheres, sexualidade e sexo como discursos emancipatórios através de performances, intervenções artísticas, ocupações e ativismo.

 

 

Sobre Tales Frey e a Cia.Excessos:

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