HIPOTENUSAS

António Bolota, 2023

Pelo combate da ortogonalidade – HIPOTENUSAS

 

O projeto artístico Hipotenusas, de António Bolota, redesenha o espaço do Project Room do BAG, propondo-o como um lugar especulativo de ação, de questionamento e de potência. O peso, o volume, a densidade, a posição e a dimensão das obras do artista enfrentam a estrutura que as acolhe, operando nela por desafio. “O desenho é a abertura da forma”[1], no sentido referido por Jean-Luc Nancy, implicando a origem, o envio, o ímpeto ou o levantamento, mas também o seu não-fechamento ou uma não totalização. Preenchem, ocupam e dominam estas salas pesadas e volumosas linhas de madeira que se erguem diagonais além da nossa altura, afirmando-se pela monumentalidade e pela potência do gesto inacabado deste desenho no espaço, que é também ‘contra’ o espaço. Como hipotenusas, estas obras atuam, opondo-se ao ângulo reto (no triângulo retângulo). Porque, como se sabe, do ponto de vista geométrico a hipotenusa identifica-se como o lado oposto ao do ângulo reto. Numa sociedade politicamente correta, como a que acreditamos diariamente ver e vivenciar, a ideia de oposição surge como geradora de um movimento e de uma afirmação que, sendo contrários à norma, se tornam operativos, porque propõem um questionamento das ideias e das regras vigentes. O sentido provocatório da obra de António Bolota é assim construtivo, porque ao questionar/ redesenhar a leitura de um espaço, convida-nos a, simbolicamente, repensarmos o nosso lugar e também o nosso papel social face à estrutura social que define e apresenta o ‘mundo’ em que vivemos, que se pretende consensual e uníssono.

Pensar no desenho como estratégia que intensifica e propõe um movimento ou uma deslocação exploratória, física, conceptual ou especulativa, tem, por isso, neste projeto, um duplo sentido: o do regresso ao lugar originário do desenho, como o sítio da busca, da procura e da dúvida e o sentido da saída, que o investe numa entrega ou emprego desse questionamento na sociedade, que tendencialmente repleta de certezas ambiciona homogeneizar ideias e leituras, para propor um só modo de ver (quer esse caminho seja proposto por doutrinas profetizadas, quer ele surja pelo alienamento, deixando a diferença apenas como uma repercussão unicamente presente no domínio do visível, porque as estruturas de pensamento são paralelas). Mas, sabemos que ver é uma operação de sujeito e que partindo da ideia afinada por Merleau-Ponty[2] sobre o que falta ao mundo para ser quadro, é a tónica na individualidade dos sujeitos que enriquece o mundo e as diversas representações que dele vamos fazendo.

Nesta exposição de António Bolota, é este abalo ao paralelismo óbvio e fácil que é proposto como convite a um acordar. No trabalho do artista, esse desvio operativo não é obtido com recurso a uma quebra de paralelismo face ao oponente, ele não resulta do desvio face ao que é igualmente monolítico, a afirmação da perpendicular. Esse seria o confronto expectável para procurar ou o que é relativo ao uso de diferentes metodologias para atingir os mesmos objetivos e identificar como vontade comum um mesmo ponto de chegada. No projeto Hipotenusas é a obliquidade que é simultaneamente oponente à horizontalidade do chão e à verticalidade da parede e, se é certo que matematicamente falando, se percorrermos a soma das distâncias elevadas ao quadrado, obteremos o mesmo território a percorrer do que o do próprio desenho multiplicado por si mesmo, aqui tudo decorre num novo resultado… A multiplicação é uma operação complexa e exigente e António Bolota propõe-na como um modo para conseguir a rentabilização dos recursos pelo que, neste projeto, a hipotenusa é a menor distância para ir ‘daqui para ali’ e, ao invés de ser entendida como opoente ao ângulo reto, ela apresenta-se como uma reta, que é economicamente (e entenda-se economia em sentido intrínseco) a elaboração mais sustentável e profícua.

Por tudo o apresentado, é com recurso à geometria que António Bolota vê e toca o espaço, tornando-o lugar pelo combate da ortogonalidade, mas também pela rentabilização dos recursos que o definem e estruturam. O lugar resulta da elevação e da soma das oponentes e, neste sentido, é como lado oposto que se configura desenho, encontro e construção geométrica triangular de vida, de arte e de fazer: de seguir vivendo…

 

                                                                                      março, Rita Gaspar Vieira

[1] Cf. Nancy, Jean-Luc (2022). O Prazer no Desenho. Lisboa: Fund. Carmona e Costa –  Documenta.

[2] Cf. Merleau-Ponty; M (2000). O olho e o espírito. Lisboa: Ed. Veja, Passagens, p.25.