Constelação Peixes

Ana Vieira, 1995

Estamos já fora de casa; fora da casa com a qual Ana Vieira foi “catalogada” (Faria, 2010). Saímos à procura de vestígios de uma das suas obras mais misteriosas: Constelação Peixes. Como surge uma constelação no sopé de um vulcão?

Em junho de 1995, Ana Vieira participou num simpósio (International Multi-Media Symposium Azores) em que artistas portugueses e ingleses apresentaram as suas propostas individuais. Ana escolheu como local para a sua intervenção a cratera do vulcão Capelinhos, no Faial, cuja atividade se fez sentir no ano de 1958, conforme lhe foi descrito, inclusivamente pelos seus pais, que viajam de barco para os EUA. A constelação foi instalada nesse lugar “onde a paisagem envolvente é ainda árida e coberta de cinzas, quase negras” (Pérez, 2006, p. 110).

Tendo sido este o único projeto concebido para a paisagem (urbana ou natural) que a artista viu concretizado (Pinharanda, 2010), não é de estranhar que o mesmo se tenha inscrito numa paisagem afetiva, evocativa das suas raízes e vivências açorianas.

O desenho foi executado através do alinhamento de tochas manualmente fabricadas, distribuídas numa extensão de trezentos metros, com intervalos de quatro metros entre si, “para que as pessoas que estavam no topo do vulcão, pudessem ver e sentir adequadamente” (Obrist, 2011).

Podemos facilmente imaginar a intensidade desta ação, quer pela imponência do lugar, quer pelo poder simbólico dos elementos que convoca e aproxima – o fogo, a água e o ar (o céu). Foi traçada uma linha formada por pontos luminosos que, num curto intervalo de tempo (que poderia ser o de um filme, ou de uma peça de teatro), interromperam a paisagem noturna.

Nas palavras de Ana Vieira “o importante foi o acto em si mesmo, ou seja, o acto foi a própria peça, mesmo para além do facto de as chamas das tochas terem tido a efemeridade de uma hora e meia. As subidas e descidas à cratera foram uma aventura física e emocional difícil de descrever. Choveu durante todo o tempo da montagem, realizada ao fim do dia, o que me permitiu sentir simultaneamente desconforto, cansaço, medo e comoção” (Pérez, 2006, p. 110).

Um acontecimento como este requer uma efetiva participação, num lugar e momento específicos. Uma vez mais, Ana Vieira convida o observador a percorrer o espaço, empenhando-se para nele poder ver alguma coisa. Aqui se manifesta a “noção de espetáculo” que Ernesto de Sousa (Sousa, 2010) cedo identificou na sua obra; o distanciamento teatral entre ator e espectador, que Constelação Peixes parece ampliar, através de uma perspetiva invertida: a constelação é observada de cima para baixo, projetando-se sobre a terra.

Mais do que um espetáculo do ver e do dar a ver, poderá ser este um espetáculo do “não ver” (Sardo, 2010); ou do ver para além do visível, através de uma “partilha da experiência” (Coutinho, 2007, p. 19,29) que é da ordem do sensível. Experiência que não podemos senão reconstituir, a partir de escassas pistas, no espaço escurecido da imaginação.

 

Raquel Moreira

maio de 2020

 

Referências

 

Coutinho, L. (2007). Ana Vieira. Lisboa: Editorial Caminho.

Faria, Ó. (2010). A desmontagem da ilusão. Entrevista com Ana Vieira [Público, suplemento «Artes e Ócios», 04-12-98, pp.2-4]. In Ana Vieira – Muros de Abrigo / Shelter Walls (pp. 201–202). Ponta Delgada, Lisboa: Museu Carlos Machado, Fundação Calouste Gulbenkian.

Obrist, H. U. (2011, November 13). Entrevista realizada por Hans Ulrich Obrist a Ana Vieira. Retrieved April 1, 2020, from https://www.anavieira.com/entrevistas/

Pérez, M. (org. ). (2006). Ana Vieira. In Anamnese: O Livro. Vol.1 (pp. 108–111). Porto: Fundação Ilídio Pinho.

Pinharanda, J. (2010). Entrevista a Ana Vieira. O Teatro da Pintura [Arte Ibérica, no 20, Dez./Jan. 1999, pp. 8-13]. In Ana Vieira – Muros de Abrigo / Shelter Walls (pp. 202–203). Ponta Delgada, Lisboa: Museu Carlos Machado, Fundação Calouste Gulbenkian.

Sardo, D. (2010). Não ver. As imagens inacessíveis de Ana Vieira [Revista Pública, 13-12-2008]. In Ana Vieira – Muros de Abrigo / Shelter Walls (pp. 205–206). Ponta Delgada, Lisboa: Museu Carlos Machado, Fundação Calouste Gulbenkian.

Sousa, E. de. (2010). Lorenti’s, 16-09-1973 (a Propósito do Ambiente no Ar.Co). In Ana Vieira – Muros de Abrigo / Shelter Walls (p. 204). Ponta Delgada, Lisboa: Museu Carlos Machado, Fundação Calouste Gulbenkian.

 

 

Fontes iconográficas

 

https://www.anavieira.com/obra/1991-2000/constelacao-peixes-78/

https://www.anavieira.com/obra/1991-2000/constelacao-peixes-79/