Desassoalhada

Nuno Sousa Vieira, 2009

 

Desassoalhada ou a capacidade de sonhar acordado

 

Desassoalhada é uma obra de Nuno Sousa Vieira que integra quatro fotografias (impressões a jato de tinta sobre papel de algodão) de um lugar particular no ateliê do artista – a sala do arquivo morto da SIMALA. Nelas, o artista dá a ver, sentir e cheirar a ausência como vestígio de perdas várias. Como apresentarei, com recurso à fotografia, Sousa Vieira desenvolve um objeto tridimensional – uma escultura -, informado pela ideia de ‘falta’.

Nas imagens fotográficas, vemos os quatro cantos e as quatro paredes que definem a sala, acompanhados pela descrição de um chão que está em falta e que se repete parcialmente de imagem para imagem. As imagens denunciam marcas de um chão de tacos (que geralmente são de madeira), que terão sido levantados e retirados daquele soalho. As paredes, que também se repetem parcialmente nas imagens, exibem marcas de diversos elementos em falta que podiam ser caixas de junção ou tomadas, um possível remate para o lambril verde na sua parte inferior e, junto ao chão, pode supor-se que estaria um rodapé. Nessas paredes, há ainda a porta ou as portas e as janelas que pontuam a sala, que também vamos reencontrando nas imagens, ora em falta porque só nos é oferecida a sua visão parcelar, ora em falha na descrição do lugar pelo excesso da repetição de cada um destes elementos. Falta ainda o exterior, porque todas estas aberturas, contrariamente ao expectável, negam ao espectador a visão e o entendimento do espaço. A privação da visão, sendo parcelar ou total, parece anunciar-se aqui como uma estratégia para uma possível vitória da geometria e da abstração, que constroem a dita escultura… senão, observe-se que, na primeira imagem, o olhar do espectador é desafiado pela porta que o coloca dentro do lugar e o aproxima do centro/meio – vertical da fotografia, que é ‘desenhado’ pela linha vertical do canto da sala. Aí, é também sentida a presença física da linha horizontal (definida pelo limite do lambril verde) que divide novamente a imagem ao meio, agora, para lhe definir uma parte superior com a mesma métrica da inferior. Esta linha horizontal também divide a imagem ao meio, desenvolvendo, deste modo, uma divisão da imagem em quatro partes iguais, perpendiculares entre si. Além disso, este rigoroso esquema métrico, organizado por duas linhas de força contrárias – uma horizontal e outra vertical, repete-se em todas as imagens, que são afinal quatro também. Olhando para essas quatro tomadas de vista, percebemos que podemos ser apenas espectros, que não podem habitar ou entrar fisicamente naquele lugar porque nele o espaço é idealizado. Para lhe aceder somos levados a aceitar entrar no jogo proposto pela geometria extraterrena dominante, segundo a qual: uma linha horizontal pode perpassar todas as imagens, sem se desviar para cima ou para baixo, para obedecer às leis da perspetiva; é possível ser-se enganado/iludido pela posição dos cantos da sala que parecem dividir as imagens segundo diferentes dimensões de parcelas das paredes, quando esses cantos da sala – dados um por cada imagem – são afinal sempre o centro/meio vertical de cada uma dessas imagens. É então a nossa perceção e a nossa lógica de construção do real que está em falta.

A este jogo da geometria e do espaço com o acaso derivado da passagem do tempo, somam-se ainda dois fatores relevantes para desequilibrar os ‘lances de dados’[1]: a repetição do número 4, que vicia os dados, e a cor, que mais não é que cor luz, em vez de cor pigmento.

Constituem a obra 4 imagens, divididas cada uma em 4 partes iguais, dando a ver 4 os cantos da sala, as 4 paredes e 4 imagens completas das 3 janelas da sala. Neste jogo premeditado, a cor pigmento é já uma ausência porque as imagens são dominadas pelos jogos da luz, que entra sobretudo pela porta, indicando sempre no chão e no lugar um percurso que dela deriva. Ciente de que a cor percecionada pelo nosso dispositivo ótico depende da sua própria condição física e intelectual e também das propriedades de reflexão dos comprimentos de onda de luz dos diferentes materiais, bem como da sua relação com a sombra; sou levada a considerar novamente um embuste nesta obra, porque nela estão apenas indícios de cores em falta: a do chão de outrora, a da parte superior da parede e do teto, a do lambril, que aparece queimada pelo tempo e ainda as dos outros elementos em falta no espaço. Ficamos assim sujeitos a fechar os olhos para ver[2] a cor luz que domina este jogo da abstração e da sensibilidade.

Face a esta consideração sobre a visão, regresso à ideia de que este é um lugar sem espaço, para a desenvolver. A obra que o apresenta enuncia no seu título aquilo a que se propõe – retirar-nos o chão. Esta sala desassoalhada é o lugar antropológico[3], que é identificado e definido por marcas concretas, pontos chave e fronteiras derivadas de um uso e habitação prolongados no tempo e por um sistema de eixos axiais, que lhe confere coordenadas geométricas precisas, tais como a referência dos cantos[4], mas a este lugar falta a inscrição num espaço real. Como um fantasma que se mescla num dia de nevoeiro (anunciado pela falta de informação visual nas janelas e porta), ele projeta-se na indefinição do branco visível nessas suas entradas/saídas. Novamente surge a ideia de que podemos estar perante um jogo entre o visível e o invisível, que pode ser pensado como uma relação entre a luz e a sombra. Como referiu Didi Huberman:

Todo cuerpo sumergido en la sombra, en una sombra de la que no sale, es un cuerpo invisible. Pongámoslo a la luz y se hará visible, sin duda, pero no por ello dejará de proyectar una sombra en algún lugar: su sombra, su parte de misterio. En todos los casos sombra, poder omnipresente de la sombra, ese suplemento intangible de oscuridad al que se enfrenta toda visibilidad en algún momento. Hablando en términos antropológicos o psíquicos, la sombra es un fantasma,un miedo visual que emana de los cuerpos, los pone en peligro o nos pone en peligro a quienes los miramos.[5]

Será esta obra, ela própria um fantasma, uma construção no espaço que afinal não é físico, mas sim o de uma interrupção do olhar, o de uma quebra na nossa atenção sobre o que passamos a considerar obsoleto ou apenas pouco rentável? Aquele lugar, aquela sala foi votada ao abandono, mas outrora foi uma parte muito importante de uma fábrica, que era um espaço de produção… de atividade, de acréscimo de matéria, de inscrição de uma existência, de acumulação de produtos, de valores, de intervenção no mercado…, e que por tudo isso, era um espaço de visibilidade. Interessa ver o que nos traz rendimento. Mas, ironicamente mesmo nesse tempo outro, este lugar era já invisível, era apenas o local onde a memória dessa atividade visível era guardada e arquivada. O que está vivo inscreve-se no campo da visão, por isso temos necessidade de o situar atribuindo-lhe um espaço e um tempo.

Esta obra aproxima-nos de um corpo invisível, que pode estar fisicamente morto, ficando sem matéria e sem espaço – em ‘falta’ – e, enquanto psique, destinado a aparecer como uma imagem fantasma[6]. O desafio deste jogo é, pois, o perigo de entrar …

 

Leiria, 20 de maio de 2020

Rita Gaspar Vieira

 

[1] Expressão relativa à ideia de que pensar é fazer um lance de dados, patente no poema de Stéphane Mallarmé – Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, publicado em 1897, na revista Cosmopolis.

[2] Alusão à frase “Fecha os olhos e vê.”de J. Joyce. Cf. J. Joyce (1966). Ulisses (pp. 41-2). Rio de Janeiro: Ed. Bras. trad. de Antônio Houaiss, Civ. Brasileira.

[3] Cf. Augé, M. (1998). Não Lugares, Introdução a uma antropologia da sobremodernidade (p.49-62). Lisboa: Bertrand Editora.

[4] Cf. Bachelard, G. (2000). A Poética do Espaço (pp. 145-155). São Paulo: Martins Fontes.

[5] Cf. Didi-Huberman, Georges. El Gesto Fantasma. – http://www.iheal.univ-paris3.fr/sites/www.iheal.univ-paris3.fr/files/9.4%20Didi_Huberman%20el%20gesto%20fantasma.pdfacedido em 20-05-2020.

[6] “(…) ese otro tiempo, claro, debe comprenderse como nudo de duelo y deseo de memoria y futuro. Los antropólogos dicen que un cadáver está realmente muerto cuando está muerto dos veces: una vez como cuerpo (cuerpo destinado a desaparecer en la tierra como materia), otra vez como psique (cuerpo destinado a reaparecer de nuevo en las imágenes como fantasma). Hay una gran necesidad, pero también una gran violencia en estos dos momentos: violencia de la tierra, violencia de la imagen”.

Cf. Didi-Huberman, Georges. El Gesto Fantasma. – http://www.iheal.univ-paris3.fr/sites/www.iheal.univ-paris3.fr/files/9.4%20Didi_Huberman%20el%20gesto%20fantasma.pdfacedido em 20-05-2020.