Grafitti na Travessa da Rua Velha, Coimbra

anónimo, 2018

Este desenho foi fotografado em uma noite de abril de 2018, na Travessa da Rua Velha, Coimbra. A figura desenhada, de autoria não identificada, expressa verbalmente seu desejo por ser livre. O balão de fala que envolve o texto é constituído por dois contornos. A cor amarela do contorno externo do balão corresponde ao preenchimento da blusa, do boné e das pupilas de seu enunciador figurado; enquanto a linha preta do balão interno é da mesma natureza que as linhas que definem as formas da referida figura. Na relação entre a figura e o invólucro do texto, as cores invertem a ordem, o amarelo de dentro fica para fora, o preto externo fica interno, como se na expressão daquilo que é dito a figura estivesse virando-se do avesso.

Numa outra relação, o contorno duplo do balão poderia referir o segundo interlocutor que responde à pergunta não-feita pela expressão do desejo de liberdade da pessoa desenhada. Devido à grafia diferente em relação à expressão de maior destaque, a impressão causada é a de que uma segunda pessoa afetada pelo desenho reagiu a ele escrevendo uma réplica que considerava adequada ao sentimento ali expresso verbalmente. A impossibilidade de identificação dessa segunda pessoa, entretanto, aventa a hipótese de que, inclusive, ela não exista. Ou, ainda, que sua existência seja irrelevante por si só. Estando a réplica inserida no mesmo balão que a fala inicial, ela não deixa de poder ser considerada como expressão da mesma figura a qual ela se dirige. Nessa hipótese, a figura está a dialogar consigo mesma.

As lágrimas, amarelas como as pupilas, escorrem como se fossem a própria matéria da pessoa figurada, a própria vista a se desfazer. No ato de chorar, assim como no ato de desenhar, a visão ordinária é suspensa: ela não vê nem deixa de ver. Durante a atividade do desenho, a vista deixa de ver presentemente para ver em potência. Logo, por meio dessa representação das lágrimas e da expressão verbal de um desejo e da resposta a ele no mesmo local de fala, é possível vislumbrar nessa imagem uma representação da natureza singular da atividade do desenho que a gerou: a performance de um indivíduo simultaneamente criador e espectador.

 

Halisson Silva