Loving Guitars

Carlos Roque, 2002

A instalação “Loving Guitars” foi apresentada na exposição 7/10 : 7 artistas ao 10º mês, com curadoria de Francisco Vaz Fernandes, no Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão da Fundação Calouste Gulbenkian, de 11 de Outubro de 2001 a 5 de Janeiro de 2002 e na exposição Expect the World, Moi Non Plus, na Parkhaus Treptow Gallery em Berlim, com curadoria de Ana Teixeira Pinto, em Março de 2002. A obra pertence à colecção do artista Pedro Cabrita Reis, mas não voltou, desde então, a ser mostrada.
Lembro-me quando, há catorze anos atrás,  entrei na sala das “Loving Guitars” e fiquei fascinada pela forma como elas pairavam no espaço: numa espécie de nirvana. Estavam entrelaçadas através das suas cordas e o equilíbrio mantinha-se de uma forma quase mágica. A tensão física criava um som trémulo que saía dos amplificadores Vox. Por outro lado, não conseguia abstrair-me da intensa carga romântica e sexual que esta instalação parecia emanar. E daqui surgiu uma conversa entre nós:

Susana Mendes Silva: Carlos, numa conversa que tivemos contaste-me que a ideia para desenvolver as “Loving Guitars” partiu de um acto performativo. Em que consistia esse acto?

Carlos Roque: Tive esta ideia ao ouvir um disco — já não me lembro que disco era  — mas eles batiam com a guitarra uma na outra, e era uma coisa assim um bocado mole, “sensaborona”…

SMS: Mas como é que tu, no disco, percebias que eles batiam com a guitarra uma na outra?

CR: Porque se percebe pelo tipo de som que é… (risos)

SMS: Podias ter visto imagens.

CR: Não, não… Isso percebe-se perfeitamente no som, e acho que o título era qualquer coisa como… Guitarras não sei que mais… ou guitarras in love

SMS: (risos)

CR: Mas eles deviam ter medo de estragar as guitarras porque faziam um bater muito suave, e eu não sei porquê mas lembrei-me de entrelaçar as guitarras e puxá-las fazendo tensão com cabos horizontais…E as guitarras levantavam assim como por magia e força entre as cordas entrelaçadas…

SMS: Sim…

CR: Suspender as guitarras e formar uma estrutura sónica.

SMS: E em termos de composição espacial?

CR: Esta elevação que as guitarras têm, é uma composição completamente clássica, de escultura clássica, quase religiosa, mística…

SMS: Porque estão em cruz?

CR: Sim, estão em cruz e têm um eixo vertical, um eixo horizontal…os amplificadores estão num plano recuado, as guitarras estão no centro da sala, estão ao centro verticalmente entre o tecto e o chão…

SMS: Sim…

CR: Mas também existem referências à música experimental e minimal repetitiva — John Cage, Glenn Branca, Steve Reich, etc — dentro do rock, sei lá, os Sonic Youth… e dentro da arte contemporânea obviamente a arte cinética… Relaciona-se com a arte cinética, com a escultura performativa, auto-performativa… Ah, há um disco do Lou Reed que é o Metal Machine Music que é um disco feito sem instrumentos musicais. Tem alguns sons semelhantes ao som da peça.
No caso das Loving Guitars são os instrumentos que “tocam” por si mesmos. Como estão ligados e estão dispostos desta maneira emitem som por si mesmos e o som — que é ruído — poderá considerar-se música. Neste caso, eu considero arte, o tal ruído é música, o som que a escultura emite… Hum… E o próprio instrumento é quase um som da máquina, um som robótico… sem instrumentista.
Portanto é uma escultura que está em performance, está ligada, está a actuar e actua como escultura, isto é, poderá estar sempre ligada, 24 horas, 7 dias por semana.Funciona desta maneira, como uma obra de arte e não como um espectáculo. Portanto é uma escultura performativa, com o tempo da obra de arte e não com o tempo da performance. Não tem nem princípio, nem fim. Só tem meio…

SMS: Hum hum…

CR: Hum… Isto é uma coisa que se conhece do meu trabalho, que eu tento desde há bastante tempo, que desenvolvo essa ideia de escultura auto-performativa… hum…e que junta elementos obviamente de ruído, de caos, em relação à perfeição formal desta peça, porque eu procurei a perfeição formal…

SMS: Mas eu quando vi esta peça, para além dessas coisas todas que estás a dizer, tive aquela sensação de magia, sabes? Do género: Ah, uau…

CR: Exactamente, como é isto aconteceu assim? Parece por magia, exacto… (risos)

SMS: Sim, depois para além disso quando tu olhas, pronto… mesmo falando de ruído e dessas referências todas, o que eu achei… olhei e pensei: Ah, isto é uma espécie de nirvana… ou seja, é aquele momento perfeito… e que estamos ali sempre, embora com ligeiras variações, não saímos daquele momento…

CR: Exactamente, exactamente… eu confesso que não tinha atelier na altura, portanto nunca testei esta peça no atelier. Para dizer a verdade, eu fiz a peça na sala da Gulbenkian… tivemos uma semana para montar, e por tentativa e erro consegui estabilizar o sistema.

SMS: Fizeste isto na tua cabeça, não é?

CR: Sim obviamente, fiz na minha cabeça, fiz desenhos e para dizer a verdade, tinha a peça bem na cabeça mas… vi a peça pela primeira vez depois de a ter instalado… (risos)

SMS: Mas o título por exemplo e depois também a própria situação em que tu falas e dessa perfeição, também tem um lado um bocadinho romântico da própria… aquela ideia mais ligada, essa coisa do rock n’ roll, coisa romântica, de… pronto, são duas guitarras… (risos)

CR: No rock n’ roll , grande parte das letras são letras sobre amor, letras de relações…

SMS: Pois, claro…

CR: Mais apaixonadas, menos apaixonadas, mais discussões, mais sarilhos, menos sarilhos, é sempre ela a falar dele ou ele a falar dela e… mas é verdade, resolvi não pensar muito sobre isso. Eu tenho um bocadinho a ideia de que, quando gosto da peça não preciso de justificá-la para mim próprio e também não preciso de justificá-la para o meu público, porque espero que o público faça a sua própria interpretação e que goste da peça só por si.

Eu faço estas peças porque gosto tanto de instrumentos musicais, e gosto tanto de guitarras que é o meu impulso do desejo… o objecto em si, que é bonito e é sexy (risos) e a memória das pessoas que utilizaram este objecto, que o tocaram normalmente e que me deram imenso prazer…

E obviamente a guitarra se entrarmos pela ideia de fetiche em relação à guitarra eléctrica… estás a ver o Keith Richards e o Jimmy Hendrix a tocarem Fender Stratocaster

SMS: Sim…

CR: Neste caso não acontece isto, neste caso é a suspensão do tempo e a suspensão da forma…

Só que a forma está suspensa com um truque que é: está elevada no ar, só que ao contrário de utilizar cabos verticais para pendurar o objecto…

Eu utilizei os cabos horizontalmente. É a força nos cabos de aço puxados horizontalmente que faz elevar a peça e que cria a tensão que nela existe… quer dizer, o som em si funcionaria da mesma maneira…praticamente, caso os cabos fossem horizontais ou verticais…penso eu…

SMS: Mas a questão não está aí, é que aqui é muito mais mágico estar na horizontal…

CR: Obviamente, e sente-se a força brutal… não sei quanto quilos são mas é uma força brutal …

SMS: A distância é muito maior…

CR: Exacto, claro… sente-se que…quem se aproxima do objecto sente essa… mesmo que não se aperceba…

SMS: É porque nós ficamos com uma ideia de levitação…Isto é quase como se fosse o momento perfeito…

CR: Exactamente… eu procurei… por acaso…lá está, voltando à mesma coisa… eu não passei, não estava à procura de uma peça que atingisse o nirvana ou que exprimisse essa harmonia…

Mas eu sabia que estava lá… eu sabia que isso ia funcionar assim… e pronto, foi uma ideia que surgiu como por acaso…

 

Susana Mendes Silva