O Colapso da Civilização

João Fonte santa, 2016

Historicamente na prática artística ocidental, o desenho foi entendido como uma parte essencial na formação e no treino do pintor e do escultor, a ferramenta mais imediata para tornar visível a ideia que seria depois refeita a partir de outros medias, como a pintura e a escultura. É a percepção do desenho como intermediário para se atingir um fim e não ele mesmo um fim em sim, associado à ideia de preparação, de estudo, e logo de incompleto, de inacabado — quer dizer o desenho é algo por completar, por acabar.

Durante o Renascimento o termo italiano disegno relaciona-se com a pureza da criação artística, a linha por oposição à cor, e para alguns artistas da época, como Leonardo da Vinci, o desenho tem uma dimensão espiritual, é uma manifestação do divino produzindo um simulacro do trabalho de criação de Deus. Deus teria à priori desenhado à linha a preto e branco, o mundo.

O ato de desenhar era no séc. XV e XVI a maneira como os artistas aprendiam o ofício da escultura e da pintura. Nas escolas e ateliers, os desenhos modelos dos ex-aprendizes mais notáveis, como Miguel Ângelo, Massaccio, Uccello, por exemplo, era tidos como modelos a seguir para os próximos aprendizes. Na Europa as gravuras desses modelos circulavam pelos ateliers e escolas de pintura/escultura. A prática do desenho esteve assim até ao séc. XIX ligada a uma forte hierarquia e a uma prática canônica, desmantelada no modernismo e no aparecimento das vanguardas, que são por definição destruidoras das hierarquias e das convenções[1].

A partir dos anos 60 do séc. XX o desenho passa a ser visto não como um medium intermédio, um estudo para alguma obra, incompleto e inacabado, mas o fim em si, mesmo que incompleto e inacabado.

O curioso é que esta descolonização, a afirmação do desenho como medium aconteceu em simultâneo com a fotografia e o video a invadirem os territórios do campo da arte nos anos 90, tais como as feiras de arte, bienais, galerias e museus. E disso é o exemplo o trabalho de Raymond Pettibon, Daniel Guzmán, Dan Perjovschi ou de João Fonte Santa.

 

O livro de artista —O Colapso da Civilização — antes de ser livro foi um livro: ou melhor, este livro antes de o ser, foi vários livros e uma instalação.

Os desenhos que o formam, foram redesenhados a partir de outros realizados em diários gráficos desde 2000 em registo diarístico e tão pessoal como político.

A instalação (uma parede com cerca de 140 desenhos) que hoje também é este livro, fez parte da exposição Colapso da Civilização em 2014 no VPF Cream Art e que deu origem a dois livros de artista publicados pela editora Stolen Books, este e 54 Nuclear Power Plants. Cinquenta e quatro paisagens pastoris de centrais nucleares.

O João Fonte Santa é um recolector. Um respigador de imagens que pululam por aí: imagens do quotidiano, da imprensa, da internet. Imagens do mundo físico e do virtual. Chamo-lhe respigar e não apropriar de propósito. Para evitar o termo “apropriação” ligado à filosofia e à história da arte, desde o século passado, como os inevitáveis ready –mades de Marcel Duchamp.

Respigar remete-nos para uma ação que se opõe ao hedonismo da nossa contemporaneidade e leva-nos para um filme/documentário de Agnés Vardas e para uma célebre pintura de Millet (o filme começa com planos de pinturas sobre o tema). E porque os ateliers do João Fonte Santa que conheci ao longo dos anos são locais onde apetece respigar, e o significante da palavra acrescenta uma intenção/ação ao título, Colapso da Civilização.

 

Scanning the real

 

O folhear do livro é como um scanning do real (tipo TAC) do que foi acontecendo sem a linha cronológica definida mas em expansão e em contração como o universo. Um olhar sobre o mundo a traço preto, veloz e inacabado.

 

Neste projeto— instalação e livro—­ Colapso da Civilização, ao contrário de outros projetos, como em Todos os dias a mesma coisa- carro-trabalho-comer-trabalho-carro-sofá-tv-dormir-carro-trabalho-até quando vais aguentar?-um em cada dez enlouquece-um em cada cinco rebenta, (statement de King Mob, grupo londrino de artistas ativistas radicais, 1970), os desenhos seguiam a lógica da transformação da imagem fotográfica em desenho. Fotografias de imprensa concretas que ilustravam situações reais. Agora há um redesenho de um desenho, não há uma imagem em concreto mas estilhaços recolhidos (os desenhos originais) de várias imagens-pensamento que João Fonte Santa tornou visível.

A narrativa visual faz-se a partir de nós leitores/ espetadores imaginando parte dos conteúdos sugeridos pelos desenhos e pelas frase-títulos que acompanham cada imagem. Esta narrativa visual não narra em concreto nada, mas esboça uma sucessão de acontecimentos, de cenários, de personagens que nos dão a sensação de narrativa. E em teoria, o que nós retiramos do conceito da narrativa, é muitas vezes, apenas aquilo que lá colocamos.

Assim, neste livro/colapso revisitamos:

A política das industrias culturais: os desenhos, Ted, Ted#2, Gerturde Stein – Pablo Picasso, 1905-06; a política internacional: os desenhos, 2013 Année Èrotique, Me Terrorista? No Me Just A Workin’ Fô Di Goverment, o Colapso da Civilização; o hedonismo: os desenhos, O Grito de Edward Munch, O Fim da Sociedade de Espetáculo, O Declínio do Império Romano; a política espacial mundial: os desenhos; Primeiro Como Estratégia Depois como Farsa, Programa Espacial Norte Coreano, Sputnik é Um Belo Nome; a política nacional: os desenhos, Presidente Cavaco Silva, Volta em Portugal em TUC TUC.

E robots a amarem-se.

[1] Dexter,E. (Ed) (2006) Vitamin D­ – New Perspectives in Drawing, London: Phaidon Press

 

Alice Geirinhas