O corpo ausente

António Lago, 2015

A ruína

Perdição I de António Lago, retrata o país hoje, de uma forma simples e directa, característica geral dos seus trabalhos performativos. Nos primeiros minutos o público apenas tem acesso ao som e lentamente são introduzidos alguns efeitos de luz, que permeiam a instalação em palco. O som ambiente inicial transforma-se num som negro, massivo e perturbador (duas músicas de Saaad do álbum Orbs & Channels) pressagiando algo catastrófico. Relâmpagos anunciam, por sua vez, uma tempestade, criada pela luz que joga com a estrutura do teatro, que parece uma casa; a tempestade como que se aproxima, através de uma estrutura de lâmpadas fluorescentes, à qual neste fase o espectador ainda não tem acesso visual. Reproduzem-se efeitos de luz, raios de luz revelam o interior da casa, traspassando o telhado do cenário que a representa. Sonoramente ouve-se agora o relinchar de cavalos, reflectindo um estado de ansiedade, grãos de areia começam a rolar sobre as telhas e a cair na instalação que representa o interior da casa. É introduzido o som de vento, de trovões, de uivos e pios de animais. O telhado vai-se inclinando lentamente de forma a que as telhas começam a resvalar e se estatelam sobre o cenário. O tapete vai-se cobrindo de telhas partidas e pó. Tudo termina em ruína.

Esta performance apresentada na Bienal da Maia em 2015, tinha como premissa, da parte do curador José Maia, a construção de um trabalho a partir de autores do norte do país. Lago baseou-se em dois livros de Camilo Castelo Branco, o Conto do cadáver e Amor de perdição, reflectindo o poder, o abandono e a decadência da burguesia, transpondo e expondo num sentido mais abrangente, essa condição que se sente em Portugal.

Assiste-se, então, à construção da destruição à medida que as telhas vão caindo e desfazendo lentamente o cenário. É uma imagem da decadência, da demissão de uma acção, do abandono a que o país tem chegado. É um retrato de um fracasso colectivo.

Ao não existir performer, o corpo encontra-se presente na sua ausência. A cadeira assim o anuncia na espera da destruição. A cadeira de um corpo ausente, que representa todos e cada um de nós remetendo à nossa responsabilidade enquanto espelho da actualidade.

Ao longo das duas últimas décadas, Lago tem pesquisado e exposto uma reflexão sobre as questões políticas e sociais contemporâneas em diversas performances como So Sweet, fresh meat! (2006), You’re not Go(o)d! (2010), Falta de Nervo Falta de Fibra Falta de Coragem Falta de Convicção (2014) em colaboração com Vanessa Adreína Martins, ou Perdição II & III (2015). Invoca-se a crise social, o equívoco dos valores, a descriminação, a diferença de géneros, retratando as relações de poder e os seus limites, a superioridade, o individualismo e a vulnerabilidade. No seu conjunto provoca ou pretende fomentar um questionamento por parte do público. Para o conseguir, o criador metamorfoseia-se em vários corpos com uma plasticidade própria e cuidada, articulando o barroco com a arte povera e minimalista: é o corpo que se transforma, que se trasveste uma e outra vez, para invocar o corpo imaginado de Gisberta como símbolo de tantas outras Gisbertas e tantas outras segregações e abusos; para expor a indiferença dos tecnocratas; para confrontar-nos com a mendicidade e a pobreza que são uma realidade nas nossas cidades; para sublinhar a crença do refugiado num futuro melhor que a Europa, afinal, aniquila. Lago pensa o hoje contundentemente. Actua e escreve nos interstícios do seu tempo. Mostra o que se prefere mascarar, por detrás da cegueira comum.

 

 

Susana Chiocca