O habitar como poética

Cláudia Renault, 2017

Na bateia de Claudia Renault

In Claudia Renault’s panning

 

Bruna Mibielli

 

Uma artista que caminha olhando para o chão, encontra ali restos, cacos, pedaços do mundo, que ela junta em uma coleção. Claudia Renault explora potencialidades de objetos perdidos como quem encontra ouro em uma bateia. Repete ela, talvez inconscientemente, gestos que há séculos se repetem na região das Minas Gerais, sudeste brasileiro, por ventura de suas jazidas de ouro, pedras preciosas e, mais atualmente, minério de ferro. Renault herda e reinventa algo que nasce nas mãos de um mineiro e migra para as mãos da artista: movimentos ligados à procura. Ela realiza, na sua caminhada diária, conexões entre o próprio corpo e o entorno, entre os objetos encontrados e a memória, entre tempo vivido e o espaço e, por fim, revela uma certa totalidade vislumbrada na partícula, no pedaço.

O trabalho artístico e teórico que Renault realizou entre 2011 e 2014 é o ponto de partida para a corrente análise. Habitar como Poética é o título dado ao conjunto de obras e instalações realizadas em seu atelier no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra e também a uma série de intervenções urbanas, todos resultados da investigação no âmbito do curso de doutoramento que lá realizou.

 

 

 

  1. A Caminhada

A artista vai de um ponto a outro. Nesse movimento rotineiro entre casa e atelier é que a prática artística se inicia para Renault, mas não só. É também o momento em que ela lança seu corpo de encontro às imagens desconhecidas. Tomemos por imagem tudo que nos cerca – as imagens dos objetos, das pessoas, do próprio corpo e as da mente. O mundo, segundo o filósofo francês Henri Bergson, é composto por imagens e o que cabe à filosofia é a análise das relações entre elas.

 

Não há como hesitar: ao colocar meu corpo, coloquei uma certa imagem, mas com isso também a totalidade das outras imagens, uma vez que não há objeto material que não deva suas qualidades, suas determinações, sua existência, enfim, ao lugar que ocupa no conjunto do universo. (BERGSON, 2010, p. 267)

 

O autor também defende, na obra Matéria e Memória, que as imagens da mente são o consciente, pois são as imagens que já se conhece, e que, portanto, as outras, as que estão soltas no mundo que nos cerca, são as imagens do inconsciente.

 

Todo mundo admite, com efeito, que as imagens atualmente presentes em nossa percepção não são a totalidade da matéria. Mas, por outro lado, o que pode ser um objeto material não percebido, uma imagem não imaginada, a não ser uma espécie de estado mental inconsciente? (BERGSON, 2010, p. 166)

 

Enquanto caminhante, a artista traz consigo as imagens conhecidas da mente e entra em contato com as novas que se apresentam nesse caminhar. É dessa forma que Renault habita o espaço da cidade que é completamente novo para ela, dada a sua mudança do Brasil para Portugal. Ela reconhece em fragmentos um modo ou um ser total da cidade. “Pode-se dizer ao pé da letra que o espaço se sabe a si mesmo através do meu corpo” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 437) e “O corpo é nada mais, nada menos, a condição de possibilidade da coisa” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 444).

Renault recolhe cacos, cola-os em um lugar. A figura 1 mostra o diálogo estabelecido entre a artista e o espaço em suas interferências urbanas. Ela vê algo que a interessa no chão, olha para aquilo, analisa sua forma, sua cor, pensa naquele objeto, no porquê da sua existência. Depois olha em volta, busca um novo sítio para depositá-lo, por vezes encontra uma fenda na pedra, uma parede de reboco velho, um fundo branco da pintura de um poste de luz. É ali que a artista faz a nova morada daquele objeto e é assim que ela afirma a sua essência mineira, barroca: encontrando “ouros” e “adornando” espaços. É por meio da arte de Renault que o objeto aparece em uma dada realidade, mas é via o conhecimento da imagem do objeto que a própria artista vive e significa o seu viver.

 

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Figura 1. Fotografias das intervenções urbanas do trabalho Habitar como Poética.

Fonte: Cortesia da artista

 

(…) “Mas como? Isso é uma fruta enrugada? Quase perecendo?”. Repito essa pergunta a mim mesma. Sim, é algo que quase já não é mais! Vou habitá-la. (RENAULT, 2016)

 

Os objetos, na obra da artista, deixam o seu lugar comum para habitar um novo espaço e carregam consigo, por meio do seu deslocar no mundo, um deslocar de sentido e significado.

 

Quando se ouve alguém afirmar que para conhecer uma cidade é preciso percorrê-la a pé, mais do que um lugar comum afirma-se, a nosso ver, algo de decisivo, a saber: que há uma realidade ou dimensão dos espaços que habitamos, que apenas aparece e, portanto, é real ao caminhante, ou seja, que apenas aparece a alguém que, como corpo, ao andar, une em cada um dos seus movimentos, intenção, realização e significado. E que, nessa união de intenção, realização e significado, percebe, no sentido de percecionar filosófico, não por uma opção de sobrevoo, mas por um gesto de pertença. (UMBELINO, 2015) [Minha transcrição do áudio da conferência]

 

A obra, para a artista, não é fruto de uma inspiração ocasional, ao contrário, é um esforço de vida, como um respirar. Ela precisa se deslocar e mover os objetos à sua frente para conhecer o espaço e para se reconhecer enquanto sujeito em metamorfose. Assim, um inventário começa a se formar, um aglomerado de cacos, que surgem desses movimentos de ir e vir.

 

 

  1. A Coleção

Os objetos que Cláudia Renault coleciona pacientemente formam um grande arquivo da memória da artista, mas como todo arquivo, refletem um lado memorioso e outro obscurecido pelo esquecimento. Objetos rotos, partidos, descascados, restos de natureza e refugos da civilização, vê-se neles o passar do tempo. Cada caco tem uma marca de uso, um desgaste, porém não quer dizer que tenham memória. Os objetos não têm memória, pois só se lembra quem é vivo.

 

Mas para isso, a memória não pertenceria a animais inferiores ao homem, nem talvez a nenhum animal mortal. Mesmo assim, não pertence aos animais que não têm percepção do tempo. (Aristóteles em De memoria et reminiscentia, 449b 30, (SORABJI, 2006)) [Tradução minha]

 

Contudo as marcas nos objetos indicam, como em um dispositivo, o tempo. São a sobreposição dos segundos em um exercício de acumulação – é o pó que marca o tempo no trabalho de Renault. Por vezes o espectador se confunde entre as porções mais inteiras ou mais partidas dos objetos não sabendo assim o que é o todo e o que é partícula, o que é corpo maciço e o que é vazio.

Carlos Drummond de Andrade, poeta que escreveu extensivamente sobre os devires da memória e do tempo, empresta algumas palavras que refletem um aprendizado empírico sobre as coleções. Aliás Drummond partilha com Renault não só o apreço pelos cacos, mas ambos carregam a marca de terem nascido na mesma região mineira. Do poema “Coleção de Cacos” leem-se os seguintes trechos:

 

(…)

Agora coleciono cacos de louça

quebrada há muito tempo.

Cacos novos não servem.

Brancos também não.

Têm de ser coloridos e vetustos,

desenterrados — faço questão — da horta.

(…)

Lavrar, lavrar com mãos impacientes

um ouro desprezado

(…)

Vidros agressivos

ferem os dedos, preço

de descobrimento:

a coleção e seu sinal de sangue;

a coleção e seu risco de tétano;

a coleção que nenhum outro imita.

(…)

(ANDRADE, 1980, pp. 973, 974)

 

Drummond mostra que a vontade voraz de quem fura o solo em busca de sua “pepita de ouro” – seja ela o que for – molda um motivo de existência do inventário e orienta como em um mapa, lugares imaginários a serem visitados por quem olha a coleção. Assim como Arthur Bispo do Rosário via, no seu ato colecionista, uma missão divina, cada colecionador é movido pelos escombros por um forte desejo. Noé foi o pioneiro na história que acreditou salvar o mundo por meio da sua coleção, sofreu a “patologia da completude a todo custo” (John Elsner e Roger Cardinal em (MACIEL, 2004, p. 17)). Quem se propõe à árdua tarefa de inventariar traz consigo uma aspiração à salvação ou à iluminação de uma verdade.

Luís Quintais, poeta, ensaísta e antropólogo, analisa a obra de Renault:

 

A artista caminha desde o início. O mapa faz-se caminhando, e esse caminhar é, como ela nos diz “uma oportunidade para o exercício do olhar”. O mapa é feito por imprecisão – como se se tratasse antes de um esboço de um mapa – e as escolhas definem-se numa intuição cega. (…) A artista como a máquina que respiga, que não pode fazer outra coisa que não seja reutilizar, recontextualizar, ressemantizar o que perdeu função e uso, o que é escombro e apodrece algures numa periferia do pensar e do sentir. (QUINTAIS, 2014)

 

Renault respiga, mas a busca que faz dos objetos é muito mais insistente do que a de alguém que colhe espigas no campo. Procedente das Minas Gerais, trabalha em uma terra que não produz milho e sim veios de pedra. Nessa região as pessoas passavam fome na era colonial porque não havia tempo nem vontade de plantar, tamanha a gana pelo ouro de aluvião. Hoje as montanhas se desfazem em pó, são implodidas e, depois de retirado o que é valioso, viram barro mole e tóxico e escoam para os buracos de rejeito de mineração.

A montanha, outrora escultura firme, é agora desenho de linhas frágeis e é aí que residem os objetos de Renault. Ela suja os pés de lama, enfia os dedos nos buracos do chão, contorce-se e coloca-se por entre pedras e apanha a preciosidade sem medo do tétano. Ela gira sua bateia, coleciona as pedras desbarrancadas e coleta o pó irrespirável. Não importa a morada da artista, Renault repete os mesmos atos por onde passa e não busca, nunca, o precioso vulgar: o ouro preto, o ouro branco ou o diamante, mas aquilo que a sociedade negou e jogou fora. Habitar como Poética reflete sobre as atribuições de valor e poder e confere uma posição periférica ao homem, mostrando um corpo que se esvai, que apodrece e se extingue.

 

  1. O Abrigo

Mas de tudo fica um pouco, às vezes muito pouco, diz Drummond (Poema Resíduo em (ANDRADE, 2000, p. 92)). Claudia Renault reúne seus objetos em um lugar. Ela precisa de quartos, cantos, de paredes sólidas de tijolo e de paredes vítreas, para que o inventário habite e para que ela também possa se abrigar enquanto chove ou faz frio.

Na sala do primeiro andar Renault começa a organizar o material coletado (Figura 2). Os objetos são fixados nas paredes seguindo uma taxonomia livre, mas percebe-se ali o ímpeto da organização: as grelhas, os conjuntos e as sequências. “Toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do precipício” diz Walter Benjamim em (MACIEL, 2004). Posteriormente paredes de vidro foram colocadas no espaço interior dessa sala e mais objetos se somaram, formando uma trama sobreposta (Figura 3). Cada partícula se soma para compor a unidade de uma memória dispersa e fragmentária, um reflexo avassalador da sociedade contemporânea.

 

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Figura 2. Habitar como Poética (Atelier de baixo). Fonte: Cortesia de Claudia Renault

 

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Figura 3. Habitar como Poética (Atelier de baixo). Fonte: Cortesia de Claudia Renault

 

Os espaços do segundo andar são ocupados por diversas instalações. Um dos quartos menores tem sacos plásticos esvoaçantes e garrafas plásticas por toda parte. Noutro há uma filmagem de passarinhos voando perto de um feixe de bambus ao chão. O primeiro revela a leveza da vida, o segundo o repouso, a morte. No outro cômodo uma palmeira morta insiste em firmar o eixo vertical e balança no rebater de luzes do vídeo projetado no seu topo, entretanto não cede, não cai. Esses trabalhos mostram uma ponte entre as questões da natureza e da civilização tão importantes na obra da artista.

No quarto maior do fundo, piso imediatamente superior ao da instalação da figura 3, os objetos fazem reverberar um caos silencioso. Ali os critérios de taxonomia são abandonados. No fundo do corredor vê-se uma cadeira (Figura 4). Deve ser um convite para sentar, mas ninguém o fez. A cadeira permanece com seu pó acumulado, intacto. Quem há de sentar no colo do próprio tempo?

 

Mas, enquanto nos sentimos ligados a esses objetos materiais que erigimos deste modo em realidades presentes, nossas lembranças, enquanto passadas, são ao contrário pesos mortos que arrastamos conosco e dos quais gostaríamos de nos fingir desvencilhados. O mesmo instinto, em virtude do qual abrimos indefinidamente diante de nós o espaço, faz com que fechemos atrás de nós o tempo à medida que ele passa. (BERGSON, 2010, p. 169)

 

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Figura 4. Habitar como Poética (Atelier de cima). Fonte: (Claudia Renault: Habitar como Poética, 2012)

 

Conclusão

 

A obra de Claudia Renault aborda direta ou indiretamente preocupações genuínas da sociedade contemporânea: como a solidão, o esquecimento e o vestígio. Trata ainda de temas importantes não só no âmbito das artes, mas também da filosofia, nomeadamente os conceitos em torno da memória, do tempo, do contato do corpo com a realidade que o cerca, da potencialidade das imagens em transitar no tempo, do domínio dos objetos, de seu lugar, narrativas e deslocamentos.

Claudia Renault dialoga com os mitos de origem e mostra, por meio da sua obra, um verdadeiro garimpo da alma humana, que é certamente de outra natureza do garimpo da exploração do ouro, mas carrega em si a mesma fundação; os movimentos de busca no solo, o olhar voltado ao chão. Do poema “Memória”, de Drummond, lê-se: “Mas as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão.” (ANDRADE, 2001). Por meio da caminhada que realiza diariamente, do inventário de objetos e da montagem de seu abrigo é que a artista se lança ao abismo das imagens desconhecidas, do inconsciente. Ao espectador de Habitar como Poética é proposto o grande desafio: o de perceber o tempo que se esvai. Alguns vão vê-lo escoar pelos objetos, outros, pelas próprias veias do corpo.

 

 

 

Referências

 

ANDRADE, C. D. d., 1980. Esquecer para lembrar: Boitempo III. 2a. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.

ANDRADE, C. D. d., 2000. A Rosa do Povo. ISBN 85-01-02597-6. 21a. ed. Rio de Janeiro: Record.

ANDRADE, C. D. d., 2001. Claro Enigma. ISBN 85-01-06259-6. 14a. ed. s.l.:Record.

BERGSON, H., 2010. Matéria e Memória. ISBN 978-85-7827-252-4. 4a. ed. São Paulo: WMF, Martins Fontes.

Claudia Renault: Habitar como Poética. 2012. [Filme] Direção: Francisco CARVALHO. Portugal/Coimbra: Colégio das Artes, Universidade de Coimbra, CAPES/Brasil, UEMG/Guignard.

MACIEL, M. E., 2004. A Memória das Coisas. ISBN 85-98271-04-7. 1a. ed. Rio de Janeiro: Lamparina.

MERLEAU-PONTY, M., 1975. O Filósofo e sua Sombra In: Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural.

QUINTAIS, L., 2014. Luís Quintais – Fragmentos, anotações, arquivo. [Online]
Available at: https://luisquintaisweb.wordpress.com/2014/11/29/o-mapa-de-uma-sombra/
[Acesso em 6 Janeiro 2017].

RENAULT, C. T., 2014. Habitar como Poética. ISBN 978-972-8989-99-6 1a. ed. Coimbra: Alma Azul.

RENAULT, C. T., 2015. Relicário. 978-972-8989-98-9. 3a. ed. Coimbra: Alma Azul.

RENAULT, C. T., 2016. Habitar Como Poética: Percurso Plástico e Conceitual a partir da obra de Alberto Carneiro e de Pedro Cabrita Reis. ISBN 978-989-703-146-5. 1a. ed. Coimbra: Palimage.

SORABJI, R., 2006. Aristotle on Memory. ISBN 0-226-76823-6. 2a. ed. Chicago: University of Chicago Press.

UMBELINO, L. A., 2015. Perceber como quem anda. Coimbra, Colégio das Artes, Universidade de Coimbra.