Porto, também no ano da cabra

Armanda Duarte, 2015

O dia não estava em nenhum lugar no recinto como estava por toda parte lá fora (Samuel Beckett, Malone morre)

 

Entre 2003-2004, em pequenas folhas de papel, Armanda Duarte desenvolveu uma série de desenhos intitulados “Lisboa no Ano da Cabra”. Durante cerca de dois meses, seus deslocamentos cotidianos, executados durante cada dia, eram memorizados, lembrados e desenhados. A superfície da folha de papel era tomada diariamente como o espaço miniaturizado da cidade, do seu bairro, na torsão de escalas própria de projetos, mapas e desenhos.

Sem precisa indicação referencial, as linhas pontilhadas – observando que é da sequência/somatória de pontos que se faz tudo o que parece contínuo – ocupam as folhas com desenhos mais ou menos densos, mais ou menos ordenados, construindo uma espécie de contiguidade entre o percurso do corpo no espaço (com suas trajetórias e pausas) e o da caneta/mão sobre o papel.

Além de pesar a singularidade e a repetição (convergente nos desenhos) dos dias e dos movimentos, o trabalho também antecipava e intervinha no percurso e nas atividades cotidianas: não apenas o desenho resultava da memória de seus percursos, mas a artista, gradativamente, também se propunha outros trajetos (comprar pão ou tomar café em um lugar diferente do habitual), como intenção de um desenho. Nessa relação sutil, me permito pensar que, ao mesmo tempo em que o desenho derivava de seus percursos físicos no espaço cotidiano, estes, simultaneamente, passavam a ser balizados, conduzidos pelo desenho: o desenho ainda por vir colaborava ou orientava o deslocamento do corpo, os lugares a percorrer.

Entre caminhar e desenhar, entre o espaço da folha e das atividades diárias, o trabalho insinua escalas e passagens: é preciso desenhar/escrever 16 folhas para ocupar um metro quadrado, aponta Perec, acrescentando que o espaço nunca é dado, demanda ser percorrido, ocupado, conquistado. E o espaço é também frágil, o tempo o desgasta: escrever/desenhar como tentativa de apreender fragmentos, de deixar marcas.

Neste trabalho, o enunciado não assume o papel secundário de legenda ou explicação, mas assimila motivos e efeitos, ponto de conexão e de mútua implicação entre discursivo e sensível. Díspares em intensidade e proporção, os sentidos e as equivalências são arranjados e se influenciam. Ao medir os percursos, a artista mede os dias, convergindo mapas e calendários, escalas também temporais. Entre espaço da folha (não vivemos, morremos ou amamos no retângulo de uma folha de papel, como aponta Foucault) e do mundo (espaço também enquadrado e recortado, matizado, com diferenças de níveis, degraus de escadas, cheios, vazios, regiões duras e porosas, segue o autor), as coisas que se medem e a extensão que ocupam, não só atentam para equivalências e diferenças, mas implicam passagens, espaços de desvios e contra-espaços. As coisas que se medem, também são medidas. E viver implica, como sinaliza Perec, passar de um espaço a outro, fazendo o possível para evitar colisões.

 

 

Aline Dias

Porto, janeiro/fevereiro de 2015