SARRO

Eduardo Matos, 2009

O primeiro dia.

Cá fora, uma luz intensa, encharcava a casa e tudo ao seu redor, entrei por um enorme portão entreaberto. Lá dentro, cada passo parecia conduzir-me cada vez mais a escuridão e uma brisa suave fazia-se sentir e congelava tudo ali. Foi preciso algum tempo para que os meus olhos se habituassem, tudo parecia imóvel, pousado aleatoriamente. Descanso ou abandono, ao fim de um dia de trabalho, ou de uma vida… Mas talvez não fosse tanto assim. Feixes de uma luz ténue, filtrada por uma poeira quase invisível, entravam por brechas do telhado, apareciam aqui e acolá, e mexiam-se com o avançar do dia, revelavam texturas, por vezes deslizavam parede abaixo até cair no chão e caminhavam lentamente por este até se desvanecerem… Pelo caminho iluminavam coisas, iluminavam objectos e detalhes da casa, para logo os devolverem de novo a escuridão. Afinal tudo parecia mexer-se e mexia-se efectivamente, parecia uma espécie de dança que se repetia dia  após dia. Movimento sempre diferente, que revelava caprichosamente, uma forma, uma textura um objecto.

Ali com aqueles escombros, pensava em como tudo aquilo parecia uma espécie de festa triste, e como tudo aquilo devolviam-me imagens e sobretudo produziam uma ressonância, cheia de desejo e sensualidade.
Não era a primeira vez que ali entrava, mas nesse dia tudo iria tornar-se diferente, desta vez levara comigo uma câmara de vídeo e um tripé, e uma vez lá dentro, pensava no tempo desta casa, num tempo em que tudo nela fazia sentido, e a cada imagem outras tantas eram-me devolvidas em eco, como se tudo trespassasse em mim com uma intimidade que eu não imaginava ter, abri o tripé e montei a câmara peguei num objecto pousei-o num tampo de uma arca e comecei a registar tudo o que ali encontrei.
Esta experiência feita de ver mas também de cegueira, complicava subitamente a minha tarefa, todos as coisas visíveis, emprestavam o seu corpo ao mundo, uma invasão e enquanto esperava pacientemente pela melhor luz, perguntava-me que coisas eram aquelas, que se revelavam no seu abandono. Não encontrei nenhuma nota da existência da casa, uma conta de electricidade que fosse, um recibo, uma factura, nenhum documento, nem mesmo uma fotografia, um caderno rabiscado, uma carta, um calendário de parede. Restavam apenas, objectos e fragmentos, fissuras e manchas. E eu pensava em tudo aquilo como um arquivo por construir, pensava nessa acumulação de coisas, no desgaste que tudo aquilo tinha, no insólito de algumas formas.

As obras que tenho realizado em contextos específicos, não se podem considerar um arquivo, não é de todo essa a minha intenção e eu não queria trazer nada comigo que formasse um corpo, que constituísse um acumular de coisas, um arquivo físico que precisasse de um lugar de armazenamento. Não queria correr o risco de matar uma segunda vez aqueles objectos expondo-os por um qualquer dispositivo.
A opção pelas imagens vídeo resolvia-me este problema, não tinha o objecto, mas tinha a sua imagem, e sobretudo o seu enunciado, e o conjunto destes enunciados formam um sistema: um texto ineditado com todas as suas complexidades e possibilidades. E era justamente esse texto que eu me propunha escrever.
As peças deste puzzle, parecem nunca se esgotarem, e são capazes, elas próprias, de formarem tantas imagens quantas as que desejamos, de alimentar todas e qualquer histórias. Tudo aquilo constituía ambiguamente para mim e perante aquela esmagadora realidade, um conjunto de coisas transformáveis. Estava determinado a considerar tudo e qualquer coisa: acrescentar peças, amputar ou enxertá-las. Não se tratava tanto de encontrar ali uma verdade, fosse ela qual fosse, mas tornar uma verdade possível. Não se trata de um acerto, nem tão pouco um truque saído da manga, mas não é a arte e as suas obras paradigma por excelência ?
Ao vídeo dei-lhe o título de Sarro, ele é em parte essa possibilidade de elaboração de jogos polémicos, entre o subjectivo e o objectivo, entre autenticidade e falso.

 

Eduardo Matos