Trajeto de um corpo

Alberto Carneiro, 1977

Alberto Carneiro (1937 / 2017) nasceu em São Mamede do Coronado, no norte de Portugal. Ele mesmo apresenta-se reforçando a importância desse lugar no seu processo criativo:

 

   A formação, as minhas convicções, estão ligadas a todo o mundo da minha infância, no qual, pela imposição de condições peculiares, pobres e libertadoras da criatividade, tive que inventar quase tudo de que precisava ao nível da minha aprendizagem natural, a partir do materiais da terra, construir o mundo nela, compreendê-la ludicamente por dentro e estruturar, assim, um esquema corporal que foi sendo, cada vez mais, a imagem das coisas da natureza, transformadoras da minha semelhança. Foi ainda determinante desses vínculos a minha aprendizagem na oficina de santeiro; dez anos de contacto directo com a matéria da árvore ou da montanha, que me permitiu um entendimento dos meios tecnológicos, pela osmose da pele, para um domínio natural e a partir do qual eu pude chegar a formular a consciência de que isso se agrega ao meu trabalho como necessidade de comunicação estética, trânsito dialéctico entre mim e o mundo: arte.[1] 

 

Parte I – Em maio 2014

 

Em maio de 1977, Alberto Carneiro apresentou na Galeria Quadrum, em Lisboa, a exposição Trajecto de um corpo, na qual a transitoriedade, tipologia, diversidade e qualidade de informação de natureza artística desenvolvidas para este projeto o tornaram um momento singular e determinante.

Este projeto era composto por uma obra escultórica e um texto que acompanhava a exposição. A obra era realizada em pedra com a dimensão aproximada da cabeça do próprio artista, e foi perfurada com um orifício que a percorria de um lado ao outro. A escultura foi colocada ao centro da galeria, mas o projeto começou antes e, citando o próprio Alberto Carneiro:

 

O projeto foi iniciado dois três anos antes e teria que passar por três elementos essenciais da paisagem sobre os quais eu tinha vivido. O projeto iniciou-se na praia de Labruge, uma praia que fica em linha reta em relação ao meu ateliê, continuou num ribeiro em São Mamede do Coronado, perto do meu ateliê e por fim, tinha que passar por uma montanha no Gerês. Este trajeto da pedra surgiu associado com um outro trajeto que era o do meu corpo com a pedra.[2]

 

A partir da praia de Labruge, Alberto Carneiro deu início a esses três momentos do projeto. A relação entre o seu corpo, a sua casa e a pedra são elementos preponderantes e intrinsecamente relacionáveis desde o início. A pedra e sua cabeça são colocadas face a face iniciando um diálogo e um reconhecimento entre o Homem (artista) e a Natureza (elemento e matéria primordial), acontecimento que podemos comprovar na segunda linha de imagens da obra fotográfica intitulada Trajecto de um corpo, (1976/77) (figura 1), que o artista desenvolveu como obra / documento de todo este trajeto. Em São Mamede do Coronado, a pedra deslocou-se para o meio do corpo e na montanha, para os pés. No intermédio entre percursos e, antes de ser depositada na montanha do Gerês, a pedra passou pela exposição na Galeria Quadrum (figura 2). Para Carneiro, a exposição foi fundamental para a autenticação da pedra enquanto obra de arte.

 

Figura 1 – Alberto Carneiro – Trajecto de um corpo, 1976/77;

Fotografia;

48 (18 x 24 cm).

 

Figura 2 – Alberto Carneiro – Vista geral da exposição Trajeto de um corpo, 1976/77.

 

A pedra foi deixada na galeria, aliás com grande perplexidade da Dulce D’Agro. Estava aflita, eu não lhe tinha dito o que ia mostrar. Disse-lhe que ela confiasse. Entretanto uma hora antes da inauguração da exposição, não havia nada na galeria, eu apareço com um saco com a pedra dentro e coloco-a no sítio que já tinha escolhido no centro da galeria, no chão. E a Dulce disse: – “e a exposição?” Eu respondi: – “a exposição é isto, a pedra.” Depois eu expliquei-lhe: “olhe, como vê a pedra tem um furo, que a passa de lado a lado.”  Depois pedi-lhe: – “agora toque deste lado e toque do outro e sinta que tem rugosidades diferentes, portanto a pedra é o elemento erótico. Portanto, as pessoas têm sensações diferentes, é como se se estivessem a penetrar pelo seu próprio corpo por dois orifícios diferentes.” A pedra ficou e ela perguntou: – “e depois?” Respondi: – “e depois o trabalho vai continuar, isto é um momento do trabalho.” A pedra ficou um mês.

Eu já tinha escolhido, já estava programado que a pedra que saiu do mar regressaria ao seio da montanha. Teria que escolher um lugar e, depois de andar às voltas num sítio belíssimo que é este, com estas pedras que são grandes esculturas, andei à procura. A pedra passou por vários sítios, até que eu tinha inicialmente escolhido aquele sítio que era o orifício que tinha a dimensão da pedra que já lá estava e, portanto, depois da exposição a pedra regressou exatamente àquele orifício, foi lá que foi colocada e o trabalho ficou encerrado.[3]

 

Quando o espectador chegava à galeria, era confrontado com uma pedra e um texto, que o artista considerava ser um texto abstrato. O espectador era convidado a penetrar a pedra, no entanto, durante toda a exposição o artista não forneceu qualquer informação sobre a origem e o destino da própria pedra. Esse enquadramento surgiu na peça fotográfica, que é para Alberto Carneiro a obra propriamente dita, que foi sendo projetada ao longo dos três anos que antecederam a própria exposição. A exposição na Galeria Quadrum foi um dos momentos do percurso da própria pedra e foi necessária para a sua autenticação como objeto de arte. Alberto Carneiro considerou fundamental cumpri-lo para que, à posteriori, a pudesse fazer regressar à sua condição de objeto natural, ficando esquecida. 

Transcrição do texto que acompanhava a exposição e que hoje Alberto Carneiro afirmou, mais tarde, ser o press release da mesma:

 

Trajecto de Um Corpo – 1976-1977

 

corpo água / corpo pedra / corpo mar / corpo sal / corpo alga / corpo areia / corpo seixo / corpo marés / corpo amanhecer / corpo búzio / corpo concha / corpo rio correndo por dentro da pedra

 

corpo corpo / corpo tactear / corpo saborear / corpo cheirar / corpo ouvir / corpo olhar / corpo sentir / corpo pensar / corpo transformação da pedra / corpo metamorfose do corpo / arte

 

corpo terra / corpo pedra / corpo ervilha / corpo meio-dia / corpo raiz / corpo húmus / corpo caule  / corpo folha / corpo flor / corpo arvore crescendo por dentro da pedra

 

corpo corpo / corpo tactear / corpo saborear / corpo cheirar / corpo ouvir / corpo olhar / corpo sentir / corpo pensar / corpo transformação da pedra / corpo metamorfose do corpo / arte

 

corpo ar / corpo pedra / corpo montanha / corpo céu / corpo transparência / corpo luz / corpo brisa / corpo nuvem / corpo neblina / corpo entardecer / corpo noite passando por dentro da pedra

 

corpo fogo / corpo pedra / corpo translúcido / corpo orifício / corpo passagem / corpo presença / corpo ausência / corpo do outro lado da pedra / corpo orifício da arte / ausência da pedra / presença do corpo / arte

 

corpo arte corpo / corpo arte pele / corpo arte boca / corpo arte nariz / corpo arte ouvidos/ corpo arte olhos / corpo arte sentimentos / corpo arte pensamentos / corpo arte transformação da pedra / corpo arte metamorfose do corpo / arte corpo de arte [4]

 

A análise deste texto, principalmente depois do confronto com a obra fotográfica Trajeto de um corpo, fornece-nos um conjunto de esclarecimentos sobre esse trânsito.

Em cada uma das estrofes, Alberto Carneiro facultou informações que permitem a construção de um percurso segundo uma lógica espacio / temporal, articulada com uma dimensão onírica. Todo o texto foi construído respeitando a própria deslocação da pedra, focando, por um lado, os diferentes pontos de toque entre a pedra e o Corpo e por outro, informando sobre os diversos lugares e os diferentes momentos do dia em que esse trajeto se efetivou.

No início do texto, que se concretiza com o desenvolvimento do próprio projeto, surge uma referência à água e uma alusão à relação entre a pedra e esse elemento. Carneiro colocou uma série de articulações entre o sal, a areia e as algas associando-as a outras de natureza mais temporal, tais como o amanhecer. No final da estrofe, Alberto Carneiro afirmou que a água passou por dentro da pedra, evocando o orifício que ele lhe tinha produzido.

A segunda, a quarta e a sétima estrofes são dedicadas à relação entre a pedra e o artista – é o seu potencial sensível que é apresentado.

Na terceira estrofe, o elemento dominante é a terra – a terra que germina e dá alimento. A marcação temporal posiciona-nos ao meio dia. E, mais uma vez, a árvore que cresce dentro da pedra enfatiza o orifício.

A quinta estrofe é dominada pelo ar, pelo entardecer, pela noite que atravessa a própria pedra e pelo cume que permite uma visão mais transparente.

Na sexta estrofe, o fogo remete para o próprio espaço expositivo e para as transformações que ele operou na própria pedra, elevando-a a matéria da arte ao proporcionar uma experiência sensitiva e sensorial, mas também racional e relacional.

Este projeto propõe-nos uma outra problemática causada pela deslocação da pedra e pelo facto de ela ter sido sujeita a diferentes situações atmosféricas e ambientais. Estas modificações, que são de natureza física e química, afetaram irremediavelmente aquela pedra. As variações de pressão e de humidade, bem como os diversos índices de salinidade a que ela esteve sujeita alteraram-na definitivamente. Por isso, estas reações químicas e alterações físicas a que a pedra foi sujeita podem, de alguma forma, ser entendidas como metáforas para os diferentes comportamentos que um mesmo corpo pode convocar mediante o enquadramento em que é recebido pelo espectador, em suma, o contexto em que ele é experienciado altera a sua ontologia e papel.

 

 

Parte II – Em maio 2020

 

Trajeto de um corpo não é uma obra de arte que se posicione num tempo ou numa geografia concreta;

Trajeto de um corpo é um ensaio, ou melhor a tomada de consciência de que o corpo só se assume e se interpreta enquanto tal, tendo por base o seu trajeto;

Trajeto de um corpo contém em si todas as possibilidades do trajeto, uma vez que esta obra não só se permite, como também instiga a que cada um de nós lhe possa emprestar o próprio trajeto plasmado num corpo matriz, que é uma pedra, e infinitamente o perpetuar enquanto movimento;

Trajeto de um corpo é uma pedra angular porque se consubstancia como elemento fundador para qualquer trajeto;

Trajeto de um corpo é um trajeto sem tempo uma vez que contem em si todas as pedras, as do passado, as do presente e contemplará as do futuro, sempre que alguém tiver o prazer de esbarrar neste trajeto e de tocar esta pedra.

 

Trajeto de um corpo ao ensaiar um trajeto maior possibilita-se enquanto raiz.

 

Nuno Sousa Vieira

Maio 2020

[1] Ver Carneiro Alberto, Alberto Carneiro– Prémio De Artes Casino da Póvoa 2007. Povoa do Varzim: Casino da Povoa, 2007, p.217.

[2] Excerto da conversa gravada por mim, realizada no ateliê de Alberto Carneiro em São Mamede do Coronado, em Setembro de 2014.

[3] Entrevista que realizei ao artista no ateliê de Alberto Carneiro em setembro de 2014. No momento em que falava, com um catálogo com a imagem da obra fotográfica, Alberto Carneiro apontava para quinta linha de imagens, composta por seis imagens nas duas primeiras. Nela podemos ver duas rochas de grande dimensão; nas três seguintes somos confrontados com a pequena pedra com a dimensão aproximada da sua cabeça em contraponto com a paisagem; e, na última imagem, um grande plano da pedra toma conta da totalidade da imagem, com o orifício no centro.

[4] Ver Carneiro, Alberto, Das notas para um diário e outros textos. Lisboa: Assírio & Alvin, Lisboa, 2007, p.80.