SITUAÇÃO T/T1 2ª PARTE
Artur Barrio, Belo Horizonte, 1970
Hipótese: A obra de arte com a polícia para a fazer. Agarrar em pleno ar a felicidade egotista e esfregar o seu nariz em sangue e trampa e dizer-lhe: vê a tua obra e engole-a (Baudelaire). Artifício e sofrimento a atrapalhar o Sábado. Sudários com impulso auto-destrutivo. Filosofar para transformar não só o psicológico mas a droga da nossa vida. Um lobisomem à espera do luar para tocar na sua vítima (ele próprio). Abre a boca, caga a Verdade! Liga-te ao mundo nem que seja com os restos da tua digestão. És uma coisa.
Um objecto unitário, intacto (a Arte? A Técnica? A Poética?) foi retalhado e os seus pedaços irreconhecíveis, envoltos numa mortalha, perdem-se no barroco do fait-divers, do lustmord tropical; o excedente artístico atirou-se a um charco, naturalizou-se numa hipótese de cadáver anónimo, vaporizou-se na pretensa vítima de um homicídio à espera do piquete, da saúde pública, do repórter fotográfico, do transeunte, do voyeur-voyou. A visita aparente da Ferocidade e da Crueldade. Venham meus pequeninos. Sabotagem (desfiguração artística), apenas por alguns minutos, ao contrato social do Brasil de 1970, Brasil do Plano Condor: é a autoridade (o policial, o patrão, o sicário) quem pode castigar a liberdade, quem pode dispor do humano. Quem se lembra dos estudantes universitários brasileiros com a boca amarrada ao tubo de escape? Quem foi o chófer que carregou no pedal na hora de acabar com eles? A faroleira não-liberdade contempla e distrai-se vendo o trabalho sério dos bombeiros e dos policiais. Tira vantagem. Ainda não foi ela, protectora dos cidadãos (míopes do mundo que passa), a tombar. Ainda não chegou a vez dos indiferentes suplicarem por piedade (ou credencial) no purgatório de um qualquer demiurgo. Ainda tem nome na algibeira, ainda tem um fim do dia, algum dinheiro no banco, alguma ilusão de paraíso. Aquilo ali pode ser um sindicalista, esses caras já andam com um tiro prometido na testa; Policiais, bem-intencionados (porque os há também, caralho!) falam entre si no meio do charco: Quem foi o filho da mãe que se armou em Moloch sem nós sabermos? E a língua queimada, azul-preta do estudante morto responde: quem foi o filho da mãe dos meus camaradas que virou Gustav Noske e foi para a cama com o Time is Money (and Money begets more money)? Todos tomaram anti-inflamatório e agora, no futuro, viraram sociais-democratas, responde o P.M. Até enobrecem para a eternidade a voz que comandou o cara que carregou o pedal. Você ai, pedaço de sanduíche, perdeu.
Relatório da ocorrência (preenchido pelo transeunte (eu, por exemplo), que tem medo e está calado, que precisa do artista para atirar pedras por ele)
a) Encontro de estranhos: a prática modernista do choque revivificada. Produção de realidade (alternativa, escapista). Delegacia e ateliê encontram-se nas águas sujas de um canal de Belo Horizonte.
b)Será esta a diferença no presente? Dar e tirar nos minutos que passam. A arte pura, imaculada, harmoniosa, específica cessou de existir. E com ela o revisionismo moral de sermos melhores; de acreditarmos que conseguimos ser algo melhor, de nos auto- descobrirmos, como o zelota Paulo em Éfeso julgou antes de se imolar como zelota do cristianismo, como Marinetti no seu Jordão lamacento nos arredores de Milão antes de se tornar crente do imperativo moral da humanidade se auto-amputar, como Beuys a arder na Crimeia ao serviço do Reich. O audare sapere kantiano afogou-se, não por culpa dele, no cantil da estética e esta no espectáculo da Besta (a transformação da competição em monopólio). O trânsito fez-se. Esta experiência de Artur Barrio torna legível que deixou de existir complacência entre o tecnocrata da arte e a estética como uma forma histórica ocidental, uma forma fantasmagórica e perene. A auto-perfeição virou vagabundo, apodreceu e será corrigida no crematório. Aqueles nacos suspeitos, múltiplos sem identidade, Gesamstkunstwerk ao serviço do claro-escuro mundano (merzescultura+informalismo pictórico+espaço público como readymade+provocação nonsense) são pedaços improdutivos de antecipação estética: no futuro, depois de 1970, a arte perder-se-á na garagem do indivíduo que nada mais é do que uma Coisa (mas sonha ser um Sujeito que sonha que é uma Coisa) ou no não-futuro das paredes orgulhosas de uma câmara/cofre-forte (uma fotografia atrasada, que, para sair mais bela, mais morta, (kodak ilusion), se demora no diafragma da Besta). Tristes os povos que assinam contratos sem os lerem. Guarda na tua mão a imagem, emociona-te com a realidade da imagem enquanto nós, os burocratas da Besta, guardamos o original (a Justiça, a Cultura, a Arte, a Saúde, a Ciência), livre de impostos, numa Micronésia dos Bens Fictícios.
Pedro Pousada