Conforto

Luís António Umbelino, 2015

O valor de intimidade da casa intensifica-se quando o Inverno a vem rodear, quando a vem atacar, como escreveu Bachelard. Conhecemos bem este acordo insólito: a casa parece retirar da atmosfera invernia recursos de ninho e de concha tanto mais delicados e subtis quanto inóspito for o tempo lá fora – como se fosse o frio a contribuir para o calor da casa, o ar gelado a insuflar-lhe conforto, a noite inóspita a intensificar a protecção do interior.

Ao referir-se a esta experiência singular em a Poética do Espaço, Bachelard recorda Baudelaire que parece ter sido sensível a esta estranha mas significativa contradição. Refere-se, nomeadamente, aos momentos de Os Paraísos Artificiais em que o célebre poeta fala da felicidade de Thomas de Quincey encerrado durante o Inverno num cottage rodeado de altas montanhas, a ler Kant, Fichte e Schelling amparado pelos vapores do ópio. Para o comedor de ópio enamorado do comfort a felicidade exigia Invernos duros que pagassem o seu tributo de frio e neve. Nada menos do que Invernos canadianos ou russos são precisos, pois apenas nessas circunstâncias o cottage se amplifica como ninho quente, suave e doce. “Todo o comfort – anota Baudelaire – exige uma temperatura rigorosa, que aliás custa dinheiro; o nosso sonhador tem pois o direito de esperar que o Inverno pague honestamente a sua dívida”[1]. É desse Inverno, comentará Bachelard, que a casa “recebe reservas de intimidade, delicadezas de intimidade”[2] que apenas pode fruir quem nela se sabe abrigar.

Mas para que tal fruição autêntica se torne possível um último pacto, que é na verdade uma negociação sempre ameaçada, uma negociação sempre no fio da navalha, é requerido: aquele que se estabelecerá entre os poderes imaginários da casa e as forças corporais de desposamento do espaço. No exemplo que acompanhamos, aqueles poderes da casa podem ser reunidos, por exemplo, “por um bom lume, bons tapetes pesados, cortinados ondulando até ao soalho, uma bela preparadora de chá, e o chá desde as oito horas da noite até às quatro da manhã”[3]; cada um destes objectos contribui para fortalecer o interior da casa e cada um deles é reforçado pelo Inverno, que lhes oferece recursos suplementares de intensificação da casa-toca como lugar de guarida protectora. Mas é aqui necessário ainda que as forças corporais de desposamento do espaço, por seu turno, consigam aportar o seu contributo para tal intensificação e trazer à superfície a justa medida de uma disposição e disponibilidade para o comfort.

A questão é agora a de saber onde procurar os recursos certos de tal disposição e de tal disponibilidade. A nosso ver, tal procura deve demandar um “lugar” insólito anichado nas próprias dobras de nossa corporeidade, enquanto esta guarda inscrita em si os saberes mais arcaicos do espaço. Referimo-nos ao “lugar” onde, gravado imemorialmente na carne, perdura, sob a forma temperada de uma nostalgia compadecida, o medo do espaço. É a inscrição de tal medo – que, por vezes, degenera na ferida profunda da fobia – que devemos mimar cuidadosamente se queremos que a casa se desvende como guarida aconchegante. Reactualizar o medo do “lá fora” sem cair na noite do pânico, exercer o irreflectido receio de sair, redobrar na justa medida esse temor pré-pessoal de estar “no meio da rua”, reencenar corporalmente o que do espaço sempre descentra, perturba e aliena, eis o que permanece a condição decisiva para que o comfort apareça realmente.

A casa intensificada por todas as subtilezas da intimidade reclama, portanto, uma justa medida de agorafobia.

Eis, então, uma tese possível: o aparecer da casa intensificada de intimidade reclama algo da “matéria” de que é feita a agorafobia, sendo que tal matéria é a mesma de que são feitas certas dobras da carne do corpo. E porque o corpo nunca esquece, tais dobras guardam tudo aquilo que, sendo próprio do medo do espaço, permanece disponível para ser reactualizado: para ser reactualizado, desde logo, em face de uma situação de perigo; mas também – neste caso por uma porção imperscrutável de subtil e bizarra promiscuidade – em face do que convoca certos movimentos corporais do habitar. Assim, será o que há de “agorafóbico” em cada um de nós aquilo que, sempre por meio de um contrato frágil que nos pode perder, nos permite viver intensamente o comfort e, nesse sentido, significar originariamente a casa protectora.

 

Luís António Umbelino

 

 

[1] Ch. Baudelaire, Les paradis artificiels. Opium et haschisch, Poulet-Malassis et De Broise, Paris, 1860, p. 196.

[2] G. Bachelard, La poétique de l’espace, P.U.F., Paris, 1961, 3ª, p. 52-53.

[3] Baudelaire, Les paradis, p. 196.