Conversa

Álvaro Lapa, 1980

Álvaro Lapa, Conversa (exemplares de série), Têmpera ou acrílico sobre platex, anos 80

 

Maioritariamente realizadas nos anos 80 são pinturas de aparência muito telegráfica, com símbolos/letras que (aparentemente) se repetem, marcando um certo ritmo e recorrência que aproxima a pintura de uma arte oral.

Mas nestas pinturas, todos os gestos de Lapa, replicados na mancha pictórica, mais ou menos concisa, são irrepetíveis. A par de ideia de fala, decorre a ideia de manualidade, imperfeição, incompreensão.

Centro-me, principalmente, nas pinturas desta série onde surge a inesperada presença de uma dupla silhueta de aparência humana: os dois protagonistas (iniciadores?) da “conversa”. Tendencialmente situados do lado esquerdo das pinturas, reforçando a sua presença pelo acentuado peso visual, situam-se nas margens, “à-margem”, como se a “conversa” pudesse fluir livremente sem qualquer espécie de censura ou imposição.   

Estas duas misteriosas silhuetas unidas acompanham as palavras (ainda que algumas indecifráveis), marcando, também elas, o compasso, o ritmo da “conversa”. O que dizem elas senão a sua absoluta presença no mundo, inscritas no campo visual tão replicadas como as letras/forma, como as quebras abruptas ou o silêncio entre frases, entre linhas, entre imaginários parágrafos? A sua existência como silhuetas ou sombras faz lembrar Milarepa (monge tibetano que surge nalgumas obras de Lapa), um Milarepa com duas cabeças e por isso com o peso do outro, ou do duplo, tantas vezes desafiador.

O Título Conversa deve-se não só à ideia de série, de repetição com variantes, mas também à possibilidade da “conversa” se poder estender ao horizonte do público participante na inútil decifração do que a obra pictórica tem escrito…

Uma conversa é um apelo à fala e não à leitura. E a fala pode ser um eco do que pensamos ao dizer e também do que dizemos quase sem pensar. 

Diferentemente, aquilo que se escreve para ser cumprido (ou bordado, como nas Profecias de Abdul Varetti) num mundo tão invadido de opiniões e teorias, funciona como utopia. Nas Profecias, sim, Lapa afirma desejos impossíveis, uma humanidade que sonha acordada:

 

A EXPERIÊNCIA INTERIOR SERÁ

TRANSMITIDA, “ENSINADA”, MUSICALMENTE.

 

Conversas mais institucionalizadas (ou codificadas) pressupõem determinações ou intenções mais concisas, tanto de dúvidas, como de conhecimentos (como nos diálogos de Platão ou nas entrevistas mais comuns nos meios de comunicação, existe, simplificando, alguém que pergunta e alguém que tenta responder).

Álvaro Lapa não pretende instruir, nem tampouco declarar nada para além da libertação que a arte constitui face à opressão, como afirmou em entrevista na RTP, nos anos 70.

 

Nas Conversas Lapa usa a escrita como pontuação ou marcos que se repetem transmitindo a ideia de alfabeto aceite e recorrente, decifrável. Mas, o conteúdo, o significado de algumas palavras legíveis é geralmente circular, repetitivo, tautológico. Uma conversa aberta pela sua impossibilidade, procedendo, também, a um mapeamento do campo visual. Mapa oral? Uma pintura inconsequente, que não é, certamente, para ser contemplada. Como se fosse audível, ao criar um ritmo reforçado pelo apelo tipográfico das cores neutras (preto/branco/cinzento/ocre), estas pinturas estão expostas numa zona de passagem (na recente exposição Lendo, resolve-se…, Culturgest Lisboa), exemplares das chamadas “obras com palavras”, de uma obra construída no trânsito pintura-literatura. Poderíamos dizer: “conversa de passagem”; ou: “aquilo que eu decifrei quando passava por perto”; ou: “sussurros inatendíveis entre personagens quase imóveis, talvez porque concentradas na irresolução de tudo e das suas existências desconhecidas…”.

A ideia de conversa, remota e inclassificável, decorre, então, entre quem passa e aquelas silhuetas juntas, ao mesmo tempo tão familiares a todos os que na sua existência participam e se apercebem da proximidade entre duas pessoas. Um par unido como presença, mas incerto nas suas comunicações. 

Figuras inscritas na mesma inconclusiva sintaxe, adjacentes às letras parecendo produzidas pelo uso de um escantilhão, umas legíveis e outras ilegíveis. A fala exposta numa espécie de pauta, orientada horizontalmente, ao modo do ocidente, com palavras escritas da esquerda para a direita, como o curso de um rio sempre em movimento. Por vezes, uma interrupção na fala (na sequência de formas da pintura), uma queda, um silêncio abrupto, um intervalo inesperado como se fosse uma interferência e o canal da fala, da estação de rádio, ficasse des-sintonizado.

Porque não há nenhuma mensagem para transmitir, a não ser a “conversa”, essa pulsão anónima e sem sentido imediato. Abecedário da incompreensão, da não-afirmação de nada e das limitações da linguagem. E o vazio negro que surge como fundo e silêncio destas pinturas: conversa de mudos; conversa de pensamentos; conversa sem fim nem início.

Entendido por alguns como não-pintor e não-escritor, Álvaro Lapa representa nesta série, usando como suporte o platex, formas pictóricas e/ou palavras escritas. Na verdade, a pintura e a escrita servem como veículos artísticos de concretização de uma ideia: a expressão da fala sem mais.

Espécie de poesia visual em formato não portátil (longe da abundância de motivos da mail art ou da partilha de poemas visuais em revistas próprias), estas pinturas assumem-se como um território pouco explorado: uma certa recusa de comunicar resolutamente. Também a ideia de uma escrita marginal, mais falada do que escrita, mais indicada do que lida (aqui uma referência aos subversivos autores da importante série Cadernos, notadamente William Burroughs). Por isso, uma escrita que pode ser pintada. E uma pintura que pode ser lida.

O eco destes procedimentos é a expressão (pictórica) da fala, essa capacidade de ocupar o espaço do silêncio (o fundo/abismo) com a imaginária deslocação do som, que se articula em letras ou manchas. A capacidade de usarmos o abecedário como um jogo, como uma constelação infinita de combinações até à incompreensão de tudo.

Fica em suspenso o mundo. E as duas silhuetas, que na verdade podem corresponder a um só ser, unidas na zona da cintura, afinal talvez refiram esta conversa infindável connosco, numa atitude de fechamento própria do confinado universo artístico de Álvaro Lapa (a ideia de recusa, advém, também, do isolamento voluntário e da impossibilidade de comunicação). Mas é precisamente partindo de escolhas fundamentais e de reformulações artísticas do real que se estabelecem caminhos ou se lançam as âncoras para que possamos, através de uma obstinada procura, desvendar o mundo.  

 

Tiago Alves da Veiga

 

Culturgest Lisboa, Lendo Resolve-se: Álvaro Lapa e a Literatura | Foto Culturgest (pormenor)