Finiespacialitude

Luís António Umbelino, 2015

1.

A questão filosófica da finitude é tradicionalmente enquadrada por uma referência temporal e por uma evidência aparentemente escandalosa: sei que tenho um fim, que vou morrer, que haverá um momento em que não estarei aqui. Esta evidência é, no entanto, peculiar: não temos nem teremos, em rigor, a experiência da nossa morte, pelo que a respetiva certeza é da ordem da antecipação em vazio de um tempo que se projeta no futuro como certeza da nossa própria precariedade. Em rigor, de facto, deve dizer-se que aprendemos sobre a finitude, primeiro, com a morte do outro, já que à nossa, como Epicuro ensinava, chegaremos sempre tarde demais. É, portanto, indiretamente que “percebemos” a nossa finitude. Aprendemo-la com a morte do outro e, muito em particular, com a morte do outro que estava vivo há menos tempo do que eu e, subitamente, se revela já velho o suficiente para morrer. Um esboço contundente da finitude percebe-se aí, no temor e tremor de um tempo inexorável que me mostra a fragilidade da existência no presente: perplexo e amedrontado, constato, não sem alguma patética desconfiança, que também eu deixarei certamente de aqui estar algum dia.

Este sentimento de temor é tanto mais difícil de enfrentar quanto é incerto que alguma vez chegue a receber indicações precisas sobre onde estarei quando já cá não estiver. Essa dificuldade, que toca as raízes do nosso existir, é justamente aquela que sempre legitimou o predomínio de uma abordagem da finitude – digamos assim – do lado do tempo. Ora, gostaria de argumentar aqui que o lado temporal da finitude não a permite pensar completamente, nem compreender na sua proximidade contundente. Para isso é necessário, eis a tese que aqui desejo propor, pensá-la do lado do espaço.

De facto, do lado do tempo a finitude aparece-nos com um duplo rosto paradoxal: o rosto da ideia lúgubre de um fim anunciado, mas também o rosto de uma muito apreciada válvula de proteção; esta válvula começa a funcionar no momento em que a morte do outro interiormente nos recorda que, “apesar de tudo, … eu ainda estou vivo …”, “eu ainda cá estou…”, “eu ainda estou para durar…”. O lado temporal da finitude joga, pois, o jogo do medo e da ilusão de segurança que advém de observar a desgraça alheia, e de empurrar os nossos possíveis infortúnios para o futuro, para um futuro que “agora” não se vê “próximo” e que será o do nosso fim. Escusado será afirmar que julgamos esse futuro muito longe e, de algum modo, como que irredutível ao presente. A situação em que assim nos encontramos pode ilustrar-se pela história (já não recordo de onde me veio) do homem obtuso que pretende negociar uma nova hipoteca sobre a sua casa, em face da ameaça de execução por falta de pagamento; descontrolado, argumenta que no banco lhe haviam dito, aquando da compra da casa, que poderia pagar o empréstimo suavemente no futuro; e agora, horrível evidência, logro supremo do banco, esse futuro suave irrompe inesperadamente, naquele mesmo dia, sob a forma de um traiçoeiro, perturbador e insuportável presente. “Quando chegar a minha hora, cá me encontra”, diz-se, na relação com a morte – como se a chegada da hora certa para morrer pertencesse a um suave futuro distante que nunca se pensa seriamente poder transmutar-se num presente traiçoeiro.

Colocada a questão nestes termos, dir-se-ia que a formulação do tema da finitude a partir do tempo serve primeiro para sublinhar uma evidência, mas que se mantém sempre junto da anestesia que a acalma. Ficamos com a ideia de uma certa falta de radicalidade ou, talvez melhor, com a sensação de que o aparecer contundente da finitude se encontra em outro lugar que não o tempo – como se o tempo fosse apenas o contexto segundo de uma formulação ou tematização apaziguadora de tal fenómeno e dos seus lados selvagens. Esta sensação de que a finitude vem de outro lugar antes de nos chegar no tempo, começa a compreender-se se dermos atenção ao que gostaria de chamar de lado espacial da finitude.

 

2.

Note-se que tudo muda se colocarmos a questão da finitude humana a partir do espaço. Desde logo porque o lado espacial da finitude nada tem de abstrato ou analgésico e, talvez por isso, oferece uma via de acesso alternativa às constantes negociações humanas com a consciência sempre perplexa de um fim anunciado no tempo.

Mas do que falamos quando nos referimos ao lado espacial da finitude? Para o dizer de forma suficientemente insólita e provocadora para chamar a pensar, formularia a resposta nestes termos: o lado espacial da finitude pode ser o casco de um barco, a fuselagem de um avião, os centímetros entre os nossos pés e um precipício sobre o qual nos inclinamos, o espaço entre dois automóveis que se cruzam a grande velocidade, etc. Há um aparecer da finitude que depende desses espaços e espessuras, desses centímetros que separam concretamente do abismo. Porventura são esses espaços que seguram o aparecer primitivo da finitude, logo esquecido e projetado no tempo por causa da trágica agressividade e da sua vizinhança insuportável que o espaço negoceia constantemente com o corpo.

Talvez sejam os marinheiros de todos os tempos, reais e imaginários, que melhor compreendem do que se assim se trata, que melhor percebem a que ponto a finitude é questão de espaço. Coy, o marinheiro sem barco de O Cemitério dos Barcos sem Nome, sabia-o por ventura melhor do que todos os outros. Ao ler os velhos romances de marinheiros e homens de mar, e depois de identificar as falhas e incongruências que lhe permitiam ajuizar sobre os conhecimentos náuticos e de pilotagem dos respetivos autores, encontrava-se sempre o sentimento familiar de uma certeza crua: que uma avaria, uma sabotagem ou um defeito que faz o barco navegar às cegas será sempre relativo em alto mar, “mas converte-se em grave na hora de se aproximar de terra”. Porque é em terra que os barcos se perdem, como é em terra se podem afundar os marinheiros sem barco: na aproximação a terra, “colocavam um lápis sobre um ponto da carta e diziam: estou aqui. E na realidade estavam ali, em cima de um baixio, de recifes, uma costa a sotavento, e de súbito ouviam o ranger do casco fendendo-se sob os seus pés. Craque! E aí tudo se acabava”[1]. E depois há os temporais; não todos, mas aqueles cujo rumo calculado em relação ao rumo traçado da embarcação revela um empate, um encontro fortuito. Sobre esses temporais sabia Coy não ser possível explicar tudo o que há para explicar: “ventos de força onze diante da Terra Nova, muralhas de água cinzenta e branca (…), pancadas e rangidos no casco, (…) a rádio saturada de maydays de barcos em apuros (…), alguns homens com a cabeça tranquila (…) preocupados com a agitação do gasóleo nos depósitos, com a fissura no casco que pode meter água no combustível (…), marinheiros tentando salvar o barco e com ele as suas vidas, acelerando nas descidas para manter o controlo, moderando precisamente antes das cristas, procurando espaço para manobrar entre as ondas maiores (…). E o momento angustiante em que, em plena manobra, aparece um recife assassino que bate no casco de través e o inclina quarenta graus, enquanto as pessoas, agarradas ao que podem, se entreolham horrorizadas, perguntando a si próprias se o barco acabará direito ao não”[2]. Não é o tempo que assim confronta com a iminência da morte, mas o espaço do convés invadido por uma onda, a espessura do casco e da sua capacidade de dilatação ou resistência, o grau de inclinação do barco até ao limite da sua flutuabilidade; é sempre o espaço a forma que assume a finitude, o espaço no tamanho do barco vivido por um corpo que não se consegue “agarrar”, espaço sonoro do ranger dos materiais, o espaço desmesurado percebido por quem se descobre subitamente uma minúscula gota no meio de um mar eterno. A medida incomensurável da finitude ressoa nesse convés inundado, nesse casco que range, nessa bolina perigosa – e ressoa espacialmente. Mais: a finitude é (primeiro e antes de mais) originariamente a grossura do metal ou da fibra (que pode ser também a da fuselagem de um avião, ou a da carroçaria de um automóvel), é o ranger das madeiras sob a pressão da água, é a finura do que separa os corpos da imensidão de água em redor.

Neste sentido, e se o que fica dito guardar alguma verdade, deve acrescentar-se agora que a medida espacial arcaica da finitude se torna ainda mais precisa se tomada a partir do que permanece espacialmente o seu critério mais fino, mais subtil e mais dramático: a espessura milimétrica da nossa pele. O lado espacial da finitude revela-a, na verdade, por redobramento corporal do espaço, à flor da pele: o mais pequeno corte ou fio de sangue esboça esse lado espacial sobre o corpo, como se a nossa pele fosse a nossa finitude.

Não por acaso, num acidente de viação, a proximidade da morte trafica-se frequentemente entre a extensão de pele que o corpo suporta rasgar sem perder demasiado sangue e as formas das diversas superfícies que podem dilacerar tal casco epidérmico. Os exemplos poderiam multiplicar-se a este respeito. Mas talvez seja possível demonstrar com este modelo – e aqui o demonstrar é um fazer sentir – em que medida a finitude aparece primeiro na extensão de pele rasgada, só depois vindo o tempo do sangue que se perde. Considere-se, pois, a parafernália de sistemas de segurança que revestem os nossos modernos automóveis; interrogue-se agora se porventura servirá primeiro (embora também sirva para tal, como é óbvio), em caso de acidente, para “ganhar mais tempo”, ou para ganhar mais espaço. A possibilidade mais intrigante é a de que, em rigor, parece servir primeiro para ganhar mais espaço: mais espaço de pele, mais espaço (mais distância) entre o corpo e os materiais que a rasgam, mais espaço (mais extensão) entre as superfícies protetoras e os órgãos e, finalmente, mais espaço (mais “extensão” interior – de que a pele não é o invólucro, mas a fantasia irrepresentável de uma continuidade percorrida por dentro) interior do corpo – como se o tecido da finitude fosse primeiro espacial, como se a finitude fosse, na verdade, uma Finiespacialitude.

 

Luís António Umbelino

 

[1] A. Pérez-Reverte, O Cemitério dos Barcos sem Nome, trad. port., Asa, 2002, p. 215.

[2] Idem, p. 327