Giuditta e Oloferne

Caravaggio, 1599

 

Nada voltará a ser como antes: Giuditta e Oloferne 

 

 

Da garganta rebenta o som do sangue vermelho vivo

 

Dirigiu-se para o centro da sala, posicionou-se, projectou o tronco para cima, lançou o peito para a frente e encaixou o pescoço nos ombros.

 

.. Inspiração ..

Prostrou-se.

Sentiu o corpo hirto.

Sentiu o corpo a tremer. Agarrou-se. Colou os pés ao chão do Palazzo Barberini.

Sabia que dentro da sala o pé direito mudaria a escala de cada pintura exposta.

E, também,

sabia que quando olhasse para o tecto dezenas de homens de cores pálidas caíriam. Nada poderia atenuar o peso do amontoado muscular ali retido.

Observou os voluptuosos corpos masculinos envolvidos uns nos outros. Balouçavam, transmitiam segurança e uma leveza estranhamente sedutora. A carne maciça, pele clara, tom sépia escuro no volume dos músculos, criava uma certa harmonia entre o salmão e o azul frio dos poucos trajes que cobriam os sexos. Preparava-se para erguer os olhos quando abertos parados chocaram com os olhos de Oloferne.

 

.. Expiração ..

Virou-se.

Esticou o pescoço e, num movimento brusco, ouviu o corte.

O sangue jorrava em várias direcções.

Receou aproximar-se. Estremeciam-lhe os orgãos. Afagou-os.

Tranquilizou-os na área dos pulmões. Estavam aflitos. Sentiu-lhes o medo.

À medida que avançava para Oloferne, a história do Antigo Testamento pintada por Caravaggio preenchia a sala. Preenchia o palácio na totalidade.

Agora, a história era dela:

 

a meio do processo, com o caminho já traçado pela lâmina da espada, Oloferne acorda de olhos esbugalhados, corpo desordenado, braços musculados adormecidos agitados. Com uma luz a iluminar a tez, de cabeça voltada para trás, lábios bem contornados, boca aberta, Oloferne reconhece Giuditta.

 

O grito é dor.

 

Giuditta é bela, alta, de cabelo preso com ligeiros soltos em desalinho ao redor da face. Corpo robusto, vicoroso, esbelto, pele queimada clara, peito torneado e apetecível coberto por uma blusa fortemente branca fina pregueada, rosto firme, pálpebras e sobrancelhas franzidas, lábios vincados pela força exercida dos braços e das mãos. Roliços e bem-feitos, os braços de Giuditta desenham duas linhas precisas para prender Oloferne: com uma das mãos, segura o seu belo cabelo masculino encaracolado negro ruivo e, com a outra, agarra na espada que lhe abre a goela.

 

Giuditta apanha-o durante o sono.

 

Junto à pintura marcava território.

 

Do fundo escuro, numa diagonal, destaca-se o corte da decapitação e a criada. Velha, enrugada, cinzenta encarquilhada, escondida atrás de Giuditta, ela espera. Com um pano nas mãos, espera a desejada cabeça.

O troféu.

O triunfo.

A vitória.

 

Sentiu-se a queimar por dentro. Os movimentos ruidosos de Oloferne foram engolidos por ela. Não conseguia agora parar os seus orgãos. Saltavam no interior do corpo e avançavam para cima e para baixo, sem rumo. Os seus olhos fixavam os dele.

 

Oloferne não teve tempo de se defender, não teve hipótese.  

 

O sangue subiu por ela acima. Nada voltará a ser como antes e, no entanto, os homens de cores pálidas continuavam no tecto do palácio. Fixos, na harmonia entre o salmão e o azul frio.

 

 

 

 Cristina Robalo, Maio 2020

 

 

                            

 Caravaggio, Giuditta e Oloferne , 144 cm  × 195 cm, 1599 Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma