Membrana – Da transparência do Solo

Andreas Stöcklein, 1987

Andreas Stöcklein, um pintor à margem

 

Eu sei que a ideia deste texto era falar de uma só obra. No entanto tive vontade de falar  de várias que se relacionam instalação e desenho no gesto performativo de Andreas Stöcklein.  Com dupla nacionalidade, portuguesa/alemã, vive em Portugal há mais de 37 anos, onde desenvolveu a investigação e reflexão artística sobre o fazer, mostrar, arquivar, desarquivar, destruir e reflectir. Apropriei-me da gnose matérica do autor e de imagem a imagem, aproximei-me sempre que pude da voz do autor e dos seus agenciamentos.

Em 1987, faz em Odeceixe uma instalação gigante, com o título “Membrana – Da transparência do Solo”. Interessava-lhe  trabalhar a autonomia do espaço quanto aos objectos e matéria que se inserem nele. Do ponto de vista da “critical spatial practices”, parece que estamos presente a uma etnografia e espeologia do invisível. 

Para  concretizar a instalação Membrana, usou “ uma estrutura construída em madeira, de 30 m de diâmetro,  em forma de espelho parabólico, mas que aparenta ter o seu ponto focal no subsolo”.

A instalação era rodeada por um trilho de azulejos, ,  composição latente à margem da instalaçãoe do lugar onde a Membrana se increvia, desenhando  “uma linha clara de intenções ténues e vindas de um vazio cheio de possibilidades virtuais”.

Enterrados na areia, havia ainda 5 instalações com  azulejos pintados: um painel em 5 camadas, “cuja 1ª ficava visível, e desapareceu bastante depressa, cujo desenho se transformava sucessivamente à medida da profundidade,  ficando cada vez menos concreto, vago e pulverizado”.

Nessa altura, o que movia Andreas Stöcklein era “a questão do latente e do real, o que se passa na margem entre o que se concretiza e o que fica excluído pela escolha.”

Andreas Stöcklein procura na natureza  o que está em nós e fora de nós, numa restituição criativa e critíca do acto de pensar e gerar obra.  Entre o pensamento do artista e o objecto não há um fio, mas um espelho deformante à moda deleuzeana. Entrando pelo solo, descobre o que está oculto e oculta o que estava descoberto. Procurar a transparência do solo, é romper a membrana do local, numa topologia da potencialidade, tornando o interior contemporâneo do exterior. O artista  não se deixa dominar pelas suas funções de separar e ligar, entendendo a membrana como aquilo que carrega a potência, para dentro e para fora. Ou que a recebe, de dentro e de fora. É um ponto de intensa tensão. Considero que há uma dramatização topológica nesta obra, sobretudo no que se refere ao desfazer da membrana que se refaz na sua plena intensidade, dando lugar à imaginação da terra.  “ Cést peut être à la surface, comme un vapeur, q’une image inconnue des choses se dégage et, de la terre, une nouvelle figure énergique, une énergie superficielle sans autro posible. ( Deleuze, Logique du sens, 1969: 336)

Com  a instalação e o trilho não se tratava de  encontrar o sujeito e a experiência, mas sim de projectar a repetição e a experiência qua aquele espaço continha como memória, num movimento retroactivo, instalando outra ordem da experiência performativa.  O que temos em presença é a indecidibiidade entre o visível e o invisível. Com as obras enterradas estamos face a uma materialidade virtual que se actualiza numa verdadeira criação, deixando ressonâncias, relembrando Merleau-Ponty quando fala de um universo de imagens sem espectador. E a pergunda impõe-se: Pode haver uma experiência sem alguém que a experimente?

A actividade como pintor contemporâneo em azulejo, em colaboração com a Galeria Ratton, cedo levou a reflectir sobre a situação ambígua de um painel de azulejo “enquanto os azulejos se encontravam encaixotados num armazém qualquer, à espera de ser observado para existir, conceito directamente importado da Física Quântica – o que nos lança para a minha segunda escolha,  “Promessa de um Lugar”.

Sendo necessariamente um lugar constituído por uma matéria, um suporte táctil, mas que não existia em concreto, “recorri a um suporte móvel de gesso de 112×112 cm ( 8×8 azulejos), 1994.”   Ora o painel em si continua na sua existência incompleta e sem o seu destino definido e serve por sua vez de suporte, ao suporte matérico, empilhando os azulejos abaixo dele. Mas o que poderia ser visto no painel, se ele fosse estendido e aplicado numa parede?

E a reflexão vai mais longe: “Situação decisiva porque, ao observar-se o painel, exclui-se forçosamente a observação da instalação tal como ela se apresenta. A pintura no painel representa precisamente o retrato da configuração da instalação. Ou seja: o observador – depois de destruir a instalação e estender o painel – é reconduzido à hipótese da instalação como uma ideia por concretizar. Assim, tanto a instalação como o painel em si, permanecem num estado incompleto nesse espaço-tempo em que vivemos. Apenas existe como um todo coerente numa dimensionalidade que nos é vedada a abarcar. ”

Andreas Stöcklein,  não está só focado na representação do mundo, nesta vontade díriamos do mundo ser observado e olhado pelo artista, mas na relação que o artista estabelece entre o representado e os suportes da representação criando métodos de investigão visual para que o material de suporte entre na cadeia da figuração. Há um pensamento ensaista do artista que é experimentado e materializado nas obras. Na verdade, quando maniplula o suporte pintado, alterando-o, o que acontece ao desenho? O desenho inclui a   distância entre a representação sobre um suporte e  o re-presentar o suporte da representação.

Neste jogo, o desenho – o desenhado – comporta uma relação particular entre o real e a ficção criando uma nova imagem do desenho. As   ferramentas conceptuais e matéricas, fazem organicamente parte deste trajecto, recolocando o desenho do corpo no centro das suas mais recentes investigações. 

13a -13f, é uma sequência documentada da evolução de um desenho. O processo teve uma metodologia.

Como se pode observar, 13b, é o desenho sobre uma folha rectangular, 13c é a folha dobrada que em 13d é recortada para um rectângulo visto em prespectiva. 13e acrescenta uma pincelada  sobre o relevo das obras que em 13f são alisadas o que resulta num recorte irregular do papel no qual se pinta de novo um rectângulo regular em perspectiva. Esse sucessivo dobrar e desdobrar, recortar etc, elimina o controlo parcial sobre o resultado, ou seja: em cada passo o artista tem de reagir ao resultado anterior… “uma espécie de ‘iteração matemática’ que desencadeou toda a teoria do caos no século passado…”

O traço funciona de novo como membrana, lugar de troca e tensão entre o estático e o movimento. “O observador final nunca terá acesso ao aspecto de cada estado intermédio. Pode dizer-se isso de qualquer obra, está certo, mas aqui cada estado intermédio representa uma alteração de carácter fundamental, é um processo de metamorfose como o de uma lagarta para uma borboleta… algo se passa internamente que se esquiva à observação directa, e que constitui uma transformação de qualidade essencial. Cada estado é uma ‘obra’ acabada, válida e em si contentor consistente de uma leitura. Para chegar a próxima ‘obra’, a anterior tem de ser destruída e tem de retirar-se do mundo.”

As experiência que se repetem  no tempo que se contrai e distende diferencialmente devolvem a exposição genética da mesma figura, num movimento retroactivo que nos daria conta dela mesma. A experiência da multiplicidade de figuras é uma síntese de instantes de tempo enquanto desenho. O traço do corpo multiplica-se, e, o que o artista capta é a performatividade do movimento desenhado.

O que estes trabalhos têm em comum, é a vontade de não se subjugar  a arte à medida retiniana e explorar a vertente háptica e corpóroa. Por outro lado a aceitação de uma potência que se pode ou não tornar em acto, que pode ou não atingir a sua possibilidade, podendo regressar ao invisível e ao latente, sem necessariamente violentar estas dimensões ou revelá-las. Melhor dizendo, os jogos performativos  do desenho não se esgotam na figuração, nem  no sentido, arrastando coisas para o desenho que eram invisíveis. E transformando o  próprio desenho num lugar. E arrastam também uma língua de corpos, que não se esgotam na representação do seu movimento, e que se revelam no que não é mostrado. E arrastam o observador/espectador para a sua natureza ambígua.

Na obra de Andreas Stöcklein, sempre observei esta vontade de corromper o suporte tradicional, desinstalá-lo, e desarquivar outras potencialidades no processo da própria obra e na relação com o corpo e com a natureza.

 

Rosa Coutinho Cabral