Ternas Peles

Anna Braga,

SENSUAIS, TRIVIAIS, HELÊNICOS…

Sonia Salcedo del Castillo (maio/2022)

 

Em conversa com a artista Anna Braga sobre sua produção cultural – e também acerca do mundo, da polarização ideológica na qual nos encontramos –, algo dito por ela não se aquietou em minha mente: “Não há mudança sem dor.” Por certo, esta assertiva acompanhará minha escrita, enquanto reflito sobre Ternas Peles, uma revisitação poética da artista instalada na quarta edição da Vitrine Pandêmica do Estudio Dezenove, no Rio de Janeiro. Trata-se, pois, de projeto iniciado há mais de 20 anos, imprescindível à compreensão de sua obra e cuja centelha criativa foi um reclame corriqueiro (não menos intrigante) do jornal carioca O Globo, no final dos anos 1990.

À maneira daquele tipo de vitrine que, ao fim e ao cabo, é qualquer imagem impressa em um jornal, as imagens de Ternas Peles investem em anúncios feitos por modelos sensuais, de nomes triviais e corpos helênicos. Tal apelo de conteúdo somado à grade gráfica, convergiriam à extensa pesquisa visual, indissociável de valores sociais e filosóficos, que Anna nos apresenta.  Para tanto, a artista comprou de O Globo os direitos de reprodução e respectivas matrizes de impressão daquelas páginas. E, numa operação conjunta, realizou uma série de entrevistas com os modelos retratados naquele jornal que, sensualmente, animavam as fantasias dos leitores, seduzindo-os às Termas Leblon (que foi a mais cobiçada e sensual das saunas cariocas, por décadas),

Ao iniciar à aventura poética de Ternas Peles, Anna amplia as imagens em grandes formatos, imprime-as em acetato, intervém nelas adicionando-lhes múltiplas camadas de pintura, grafismos, colagens, enfim. E pôs-se a criar uma espécie de vocabulário que geraria várias reproduções até chegar aqui.

Do papel fotográfico ao plotter como superfície inicial, desde sempre, suas imagens carregam um rigor visual à perfeição helênica integrante de suas obras. A artista trabalha com lupa. Dado que confere a elas uma fatura e acabamento diferenciados. Afinal, trata-se de um trabalho que tem por gérmen um conteúdo de natureza privada, que suscita uma fruição individual, minuciosa… Mas que, apesar disso, não escapa de ser vocacionado ao olhar público, dada a natureza do veículo de comunicação do qual se originou.

Antes em um jornal – agora em uma vitrine –, aqueles mesmos modelos adicionados a fragmentos gregos, permanecem não sendo aquilo que vemos. São, pois, personagens artificiais quais manequins expostos a seduzir os passantes.

Ao lidar com tantas camadas no campo da representação, a artista explora a inoperância sobre a ideia de aura da arte, frente à cultura da reprodutibilidade da imagem, preconizada por Walter Benjamin.

Nessa cadeia reprodutiva de imagens, a passagem do analógico ao virtual, colocada aqui, abri-nos novo abismo a respeito do real, para o qual Anna lida com maestria: transforma a imagem do negativo de acetato em plotter sobre clear film e, assim, reafirma a inviabilidade sobre a sacralização da arte nos dias recentes.

Não por acaso, a artista nos propõe versões positivas e negativas de suas imagens plotadas, sob sofisticada instalação. Ao fundo do espaço da referida vitrine, ela situa a imagem positiva, deixando sua impressão negativa à frente e espacializa os plotters em espelhamento. Ou seja, no plano mais distante ao olhar do visitante a imagem é mais definida, enquanto no mais próximo ele não é. Sobretudo, em razão de a superfície do plotter estar ao avesso a exibir uma escrita inversa. Numa estratégia de edição expográfica, ela nos coloca em um limbo espacial, pondo em xeque nossa apreensão do trabalho. Ao espacializá-las invertidas, Anna conduz o olhar do espectador para dentro da vitrine e, dessa forma, vai incluindo o seu espaço cúbico como mais uma layer justaposta. Feito pele, o vidro protege e, ao mesmo tempo, expõe continente e conteúdo, impedindo e impulsionando a percepção do fruidor a experienciar uma situação entrópica. Seu olhar vacila, se inquieta, como se buscasse alicerces espaciais outros. E assim, finda por tornar-se parte constituinte do todo da obra.

Esse ponto leva meu raciocínio àquela assertiva da artista sobre a dor da mudança que mencionei no início dessa escrita. E me leva a relacionar a obra de Anna Braga às questões políticas polarizadas que vivemos nos últimos tempos. Em que cada verso e reverso, positivo e negativo do outro, pensa ser o lado certo. Mas não apenas.

Esse campo instável, no qual estamos jogados na situação sociopolítica atual, lança-me em uma fantasia poética lógica, rumo ao drama barroco. Afinal, ele o acontece em um lugar dialeticamente dilacerado, pressupõe espectadores inseguros, submergidos na iminência do movimento da história, afirma Benjamin.

Entre este lugar e as inquietações sociais contidas em Ternas Peles – das questões do gênero e da violência –, há uma linha de analogia: tanto por lidar com o espaço caleidoscópico peculiar à cultura da imagem, quanto por se apropriar e introduzir elementos alegóricos, como por exemplo: a estatuária grega junto aos anúncios de jornal.

Nessas imagens de Anna o recurso da alegoria está implicado às condições históricas nas quais nos encontramos: somos sobreviventes de valores em ruínas, graças à mercantilização da vida… quais as ruínas no reino das coisas são as alegorias, portanto, no reino do pensamento. Elas se mesclam à melancolia, pois é, alegoricamente, que conseguimos lidar com objetos cuja universalidade nos escapa.

(Operação semelhante foi realizada na publicação da Cosac Naif, A new sentimental journey, como também na exposição A perfeição da forma, apresentada na Galeria da Academia de Florença. Ambas, alegoricamente, relacionaram a arte clássica à contemporânea e de modo semelhante as camadas investigativas de Anna: a geometria da forma, o fragmento da forma; a forma duplicada e a forma escultórica…)

Pictórica, gráfica e obstinadamente, a artista revela-se ávida em cristalizar o turbilhão da imagética citadina. Numa tática de construção e desconstrução estética, Anna organiza e desorganiza fragmentos em suas imagens. Volta-se ao mundo exterior para contaminá-las dessa exterioridade, em veladuras, traços, rastros, vestígios visuais… e expô-las numa vitrine – lugar nem rua nem interior que, voyeristicamente, atrai o passante. À mostra, Ternas Peles oferece-se à fantasia e à imaginação, mas não podem ser tocadas. Feito alegoria mundana, a escolha do passante, diante da vitrine, remete ao nosso momento atual ou espécie de viagem sem volta. Através do vidro, portanto, esconde-se o coito. (A dor residiria em sentir remorso, tão logo a possessão é consumada.