Via Láctea – Constelação da Serpente

Gilvan Samico, 2005

56 x 94 cm, 19/120, xilogravura

Em exposição: Samico Between Worlds [Rumors of War in Times of Peace], curadoria de Marcio Harum, na Dream Box, Nova York, 4 de fevereiro a 5 de março de 2017 – www.dreambox.nyc

 

Marcia Vaitsman: o assunto sobre os tempos que a contemporaneidade suporta surgiu durante a visita à galeria, mais especificamente de como a arte de outros mundos é vista como folclore. As obras do Samico provocam a questão sobre a contemporaneidade e arte folclórica, encadeando alguns pensamentos sobre o presente e o passado, como se a arte urbana que dialoga com o que é feito no Atlântico-Norte pertencesse à contemporaneidade e o folclórico estivesse no passado. Enquanto, por outro lado, alguns entendem a questão do tempo menos linearmente, após vivências de outros tipos de tempo: o tempo dos loucos, o tempo dos rituais, o tempo das rupturas, o tempo paulistano e o tempo amazônico… Essa formulação te parece familiar? Qual a tua ideia desses diversos tempos?

Marcio Harum: a causalidade percebida por você, talvez mais presente nesta específica obra de Samico, Constelação da Serpente de 2005, nos traz à tona algo de absoluta agudeza da contemporaneidade ao observarmos em retrospecto a obra do artista. Em diversos de seus trabalhos podemos ver a simultaneidade de corpos e vidas intergalácticas e multidimensionais. Samico Between Worlds [Rumors of War in Times of Peace] é uma exposição que nos possibilitou um processo de realização absolutamente colaborativo. Samico foi uma figura reclusa. Era rara a sua circulação profissional, o que não impediu a visibilidade e tampouco a legitimação de sua obra e nome. Viveu por volta de 50 anos com Dona Célida, sua esposa, e filhos, em um sobrado secular na cidade de Olinda, em Pernambuco, pegado ao Mosteiro e Basílica de São Bento (construído em 1599, a data de sua reconstrução após o incêndio de 1631 é o ano de 1656). Era comum que Samico comentasse orgulhoso que várias de suas gravuras lhe tinham tomado até 1 ano de trabalho duro em busca da impressão perfeita. 

Olhe que curiosa a confirmação deste pensamento: enquanto pesquisava e preparava esta mostra, sem a mais remota ideia de que Donald Trump seria eleito o 45o presidente dos Estados Unidos da América, e que em seus primeiros dias de governo, as gravuras de Samico seriam desembarcadas no aeroporto JFK, em Nova York, em meio ao caos de tantas manifestações contra o decreto anti-imigração, que suspendeu temporariamente o acesso a refugiados e o veto a entrada de cidadãos de 7 países, até sua anulação com liminar temporária adotada pelo juiz federal norte-americano James Robart, de Seattle. Como não estamos jamais alertas a essas previsões óbvias do atual curso da humanidade em seu devido tempo de acontecimento? O extremo disto é esta outra situação, ainda acerca da justaposição dos tempos, e gira ao redor do que ocorreu ao longo do período expositivo, pois até a inauguração da mostra não existia comunicado algum da NASA de que um novo sistema solar inteiro pudesse estar enfim em vias de ser descoberto. Contudo, foi o que de fato se passou ao fim do mês de fevereiro de 2017, e a distância desta separação, sabemos hoje, é de apenas 39 anos luz da Terra. 

Marcia Vaitsman: uma segunda pergunta sobre esses tempos é que o urbano como contemporâneo é sustentado por uma expectativa da arte como algo individual, masculino e divinamente iluminado enquanto há uma falta de entendimento do folclórico como arte do coletivo e da subjetividade como objeto de interligação entre as pessoas e as coisas, até mesmo numa perspectiva animista. Há a possibilidade da palavra folclore ser resgatada ou teremos que inventar uma palavra para um tipo de arte contemporânea de uma humanidade não egoísta?

Marcio Harum: penso que esta é uma indagação formulada, e que deve estar melhor endereçada aos estudiosos dos efeitos colaterais das ações do mercado e da universidade. Veja, se no ranking das escolas de arte e universidades mais sexy do mundo, os professores-artistas são frequentemente agenciados pelo mercado, e se o mercado passa a ditar que o ‘folk‘ está em alta, pode até haver uma precificação corrente do não objetual, do artesanato, de uma arte rural. Falo do lugar que ocupo, como não poderia deixar de ser. Preste atenção no que vem se passando na vida acadêmica nas grandes cidades do Brasil: estamos vendo surgir toda uma nova geração de pesquisadores e docentes com uma efetiva (inter)ação social-política insignificante. E igualmente, está se desenvolvendo ao mesmo tempo uma outra geração de pesquisadores e docentes evangélicos neopentecostais bastante interessados em economia e poder empresarial. Em contrapartida, já são dezenas de iniciativas de projetos artísticos e educativos recentes povoando regiões longínquas e carentes da Amazônia ao norte e do agreste e sertão da região nordestina. Talvez o que tenha que ser reinventando neste começo de mundo pós-capitalista, além dos modos de exibição de arte, sejam os meios de vida e trabalho parcialmente individualizados, mas sem dúvida mais cooperativos.

 

A escala: do animal ao galáctico (passando pelo humano)

 

Quatro casas são protegidas por quatro homens e uma serpente. Na mata no Acre disseram-me que a serpente protegeria nossas caminhadas circulares no escuro, na arena do ritual da felicidade onde ao centro há uma estrela, e assim protegeria a caminhada cósmica por entre as árvores, sobre os rios, pelo céu. A Via-Láctea é protegida pela mesma serpente como uma projeção da escala humana de dentro da floresta para a magnitude astronômica no infinito escuro. Se ainda há tantos ruídos no entendimento de sistemas complexos, pelo menos a questão da escala entre o corpo e a amplitude da galáxia nos alcança se for atrelada ao tempo: são cem mil anos luz de ponta a ponta, sendo que o nosso sol está um pouco além da metade do caminho entre o centro e a margem. Imagine que viajando à velocidade da luz em uns 20 mil anos chegaríamos ao centro, no momento do nascimento da galáxia – viajaríamos 20 mil anos para o passado.

A mitologia ameríndia descreve um estado originário no qual humanos e os animais não se diferenciam: “a condição original como comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais.” (Viveiros de Castro, 2004, p. 229-230) O ‘animismo’ de F. Guattari é ‘maquínico’, e não antropomórfico como o ameríndio, no sentido de partes extra partes ou de enunciações que acontecem fora da escala e forma do que é humano, incluindo até enunciações cósmicas. Na filosofia ocidental, há tradições que se ocupam com imagens e escala de problemas, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, como os das cosmologias das sociedades animistas. (Melitopoulos & Lazzarato, 2011, p. 9-10)

E imagine que viajando, por uns 30 mil anos, para a margem mais próxima da galáxia, percorreríamos 2,817 km para o futuro…

 

— Do dia da entrevista ao dia da publicação, caiu a anulação do decreto anti-imigração do juiz James Robart, de Seattle, e uma nova versão do decreto entrou em vigor. Desta vez o primeiro estado a reagir ao novo decreto foi o Havaí. A situação muda de semana em semana, às vezes de um dia para o outro —

 

por Marcia Vaitsman – 10 de março de 2017.

 

 

 

 

Fabian, J. (1983). Time and the Other: How Anthropology Makes Its Object. New York: Columbia University Press.

Melitopoulos, A., & Lazzarato, M. (2011). O animismo maquínico. Cadernos de Subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos de Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, (2011), 7–27.

Viveiros de Castro, E. (2004). Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. O que nos faz pensar, 1(18), 225–254.